A questão central deste estudo começou a se anunciar durante a
minha pesquisa de mestrado, realizada no decorrer do ano de 2001, a qual visava
à compreensão da relação entre música e penitência no catolicismo popular do
sertão do Cariri - CE, bem como o conhecimento da função do repertório fúnebre
para o êxito da Sentinela – ritual de morte realizado em muitos lugarejos
nordestinos. Como em todo processo de coleta de dados, muito do material
recolhido não guardava relação direta com o foco da pesquisa, não sendo, por
isso, digno de reflexões mais acuradas. Entretanto, nesse caso em particular,
algo em especial irrompeu com força suficiente para reclamar atenção
especulativa, a despeito de aparentemente não se comunicar com o cerne na
pesquisa.
Durante uma pesquisa de campo realizada em Juazeiro do Norte,
aconteceu-me adentrar um salão lateral de uma igreja católica onde se reunia um
grupo de membros de alguma pastoral. Eu estava à procura de pessoas que
soubessem cantar os benditos tradicionais do repertório fúnebre ou que tivessem
participado de Sentinelas, na intenção de entender os usos das músicas no
decurso do rito de exéquias sertanejo, bem como investigar como esse repertório
musical contribuía para a eficácia ritual. Qual foi minha surpresa, quando após
informar minhas intenções e o objeto de minha pesquisa, as pessoas que se
encontravam na sala cuidadosamente se negaram a prestar informações sobre o
tema, alguns chegando a externar enorme desconforto e realizar sucessivos
“sinais da cruz” como que se protegendo de algum mal possível que se exalasse
da simples possibilidade de se comentar o assunto. Agradeci e me retirei do
recinto levando comigo imagens das fisionomias recalcitrantes e de uma agitação
dissimulada provocadas pela minha pergunta e presença.
Este incidente me fez recordar outro episódio que o precedeu e que
parecia lhe estar relacionado. Na semana anterior, por informações diversas fui
levado a procurar o Sr. Nilton, um sacristão que me disseram conhecer bem os
antigos benditos. Nossa conversa ocorreu dentro da igreja. Detidamente ele me
explicou como eram realizadas as sentinelas e forneceu detalhes sobre as rezas,
explicando os rigores e precauções de seu uso durante a Sentinela. Após certo
tempo de conversa eu o solicitei que cantasse alguns benditos, o homem olhou ao
redor da sacristia, como se quisesse, ou não quisesse encontrar alguém em
especial, e se recusou a fazê-lo sob o argumento de apenas conhecer alguns
“pé”, ou seja, alguns versos ou estrofes. Como essa era a minha segunda viagem de
campo e, portanto, já havia realizado algumas gravações e transcrições
musicais, eu conhecia dos benditos o suficiente para me permitir cantar uns
“pé” na intenção possível de deixar o Sr. Nilton mais à vontade pra entoar
alguns benditos. Aos poucos ele foi se sentindo mais confortável pra cantar,
mas entoando sempre baixinho e sem concluir as músicas, até que por fim, quando
o interpelei sobre a forma cautelosa com que cantava, revelou-me que as pessoas
não “gostam mais que se cantem essas coisas” e que o padre certamente o
repreenderia se o soubesse cantando-as.
Eu me perguntava o que haveria naqueles benditos que o mero falar
sobre eles, para algumas pessoas, já era causa de tamanho incômodo. Eu já
conhecia suficientemente o repertório para saber que os temas mais recorrentes
nos textos dos benditos diziam respeito a narrativas sobre morte, penitência e
salvação, o que a um primeiro olhar não trazia grandes afrontas àqueles
presentes nas músicas religiosas atuais. Mais do que preferência pelo novo repertório
musical utilizado nas igrejas, havia para alguns fiéis, outrossim, uma absoluta
recusa de sequer conversar sobre a forma antiga de cantar tal repertório. Ainda
que este fato não tenha representado grande inflexão naquela pesquisa
etnográfica, haja vista desviar-se da reflexão central empreendida na
dissertação de mestrado, o acontecido foi suficiente para que se descortinasse
um segundo olhar, secundário, mas que manteve-se latente durante toda pesquisa,
atento, sobretudo às coisas não ditas.
Essa foi a primeira vez que a decepção de não encontrar
informantes não fora acompanhada de qualquer frustração, mas de um misto de
curiosidade e, em certa medida, de algum tipo de angústia, definida talvez em
função da impotência ante o mistério que se me apresentava. Ainda sem bem saber
o que aquilo tudo significava, a minha etnografia, sobretudo sonora, tinha se
mostrado impotente para traduzir os estados de ânsia que se instauravam nas
mãos, nos olhos, no corpo daqueles que refutavam e até temiam ouvir o repertório
dos benditos tradicionais. Além dos rumores que se ouviu no salão da igreja,
havia naquelas pessoas um som de outra natureza. Uma música feita de gestos, olhares, posturas
e fisionomias irrompia cheia de silêncios, a qual eu era incapaz de compreender.
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