quarta-feira, 16 de abril de 2014

Breve inventário sobre o canto popular religioso no Nordeste


Os vários anos de incursão etnográfica no sertão do Cariri, e em Juazeiro do Norte em especial, renderam-nos uma amostra bastante representativa do repertório musical relacionado à religiosidade popular praticada nessa região. A impressionante variedade temática e extensão do repertório musical podem ser inferidas a partir das inúmeras gravações efetuadas, já contabilizando mais de uma centena de registros, na maioria dos casos sem quaisquer indícios relativos à autoria ou a mecanismos de transmissão de conhecimento musical. “Eu ouvia os mais velhos cantarem e pronto: tava aprendido”, “quem ensina é Nosso Senhor”, “meu pai disse que eu não podia estudar, porque eu ia aprender coisas que iam atrapalhar minha memória, assim eu fiz”; explicações como essas foram mobilizadas para relatar uma iniciação na arte de cantar benditos. Para os líderes religiosos leigos – beatas, penitentes, tiradeiras de renovação ou de sentinelas, é imprescindível possuir um profundo conhecimento do repertório musical, de cuja habilidade advém grande parte do reconhecimento que lhes são dispensados. A capacidade de memorizar e cantar grandes quantidades de benditos é sempre atribuída a uma dádiva concedida por Deus, que se apresenta desde tenra infância. O canto é parte essencial das cerimônias religiosas, não apenas como mera expressão interlocutória realizada entre orações, mas na condição mesma de reza, e de reza mais poderosa do que as faladas, sejam nas rápidas novenas, sejam nos intermináveis pernoites “cantando o morto”.
Para realizarmos este trabalho foi imprescindível recorrermos a registros sonoros que produzimos em pesquisas anteriores, bem como servirmo-nos de fontes complementares provindas da literatura, do cinema e de folhetos de cordéis, as quais possibilitassem a realização de um inventário sobre o caráter sonoro atribuído aos antigos benditos, bem como aos usos relativos ao seu canto. Apresentaremos nas próximas postagens uma interpretação desse material, conteúdo fundamental para embasar algumas de nossas conclusões, sobretudo devido às limitações decorrentes dos impedimentos de falar sobre práticas devocionais antigas.

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