Os
vários anos de incursão etnográfica no sertão do Cariri, e em Juazeiro do Norte
em especial, renderam-nos uma amostra bastante representativa do repertório
musical relacionado à religiosidade popular praticada nessa região. A
impressionante variedade temática e extensão do repertório musical podem ser
inferidas a partir das inúmeras gravações efetuadas, já contabilizando mais de
uma centena de registros, na maioria dos casos sem quaisquer indícios relativos
à autoria ou a mecanismos de transmissão de conhecimento musical. “Eu ouvia os
mais velhos cantarem e pronto: tava aprendido”, “quem ensina é Nosso Senhor”,
“meu pai disse que eu não podia estudar, porque eu ia aprender coisas que iam
atrapalhar minha memória, assim eu fiz”; explicações como essas foram
mobilizadas para relatar uma iniciação na arte de cantar benditos. Para os
líderes religiosos leigos – beatas, penitentes, tiradeiras de renovação ou de
sentinelas, é imprescindível possuir um profundo conhecimento do repertório
musical, de cuja habilidade advém grande parte do reconhecimento que lhes são
dispensados. A capacidade de memorizar e cantar grandes quantidades de benditos
é sempre atribuída a uma dádiva concedida por Deus, que se apresenta desde
tenra infância. O canto é parte essencial das cerimônias religiosas, não apenas
como mera expressão interlocutória realizada entre orações, mas na condição
mesma de reza, e de reza mais poderosa do que as faladas, sejam nas rápidas
novenas, sejam nos intermináveis pernoites “cantando o morto”.
Para
realizarmos este trabalho foi imprescindível recorrermos a registros sonoros
que produzimos em pesquisas anteriores, bem como servirmo-nos de fontes
complementares provindas da literatura, do cinema e de folhetos de cordéis, as
quais possibilitassem a realização de um inventário sobre o caráter sonoro
atribuído aos antigos benditos, bem como aos usos relativos ao seu canto.
Apresentaremos nas próximas postagens uma interpretação desse material,
conteúdo fundamental para embasar algumas de nossas conclusões, sobretudo
devido às limitações decorrentes dos impedimentos de falar sobre práticas
devocionais antigas.
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