Ewelter Rocha
Prólogo
A religiosidade popular de Juazeiro do Norte possui
uma componente musical extremamente integrada às práticas religiosas, tanto nas
grandes romarias como nos pequenos ofícios do cotidiano. Seja encomendando a
alma do defunto, embalando coreografias de danças religiosas, bendizendo o Menino
Jesus em celebrações natalinas ou marcando o ritmo dos golpes do cilício nas
cerimônias de autoflagelação, a música assume sempre um lugar de destaque,
sendo impossível conceber uma procissão, uma novena, uma quermesse ou um
funeral sem a “animação” dos benditos.
Os vários anos de incursão etnográfica no sertão do
Cariri, e em Juazeiro do Norte em especial, renderam-nos uma amostra bastante
representativa do repertório musical relacionado à religiosidade popular
praticada nessa região. A impressionante variedade temática e extensão do
repertório musical podem ser inferidas a partir das inúmeras gravações efetuadas,
já contabilizando mais de uma centena de registros, na maioria dos casos sem
quaisquer indícios relativos à autoria ou a mecanismos de transmissão de
conhecimento musical. “Eu ouvia os mais velhos cantarem e pronto: tava
aprendido”, “quem ensina é Nosso Senhor”, “meu pai disse que eu não podia
estudar, porque eu ia aprender coisas que iam atrapalhar minha memória, assim eu
fiz”; explicações como essas foram mobilizadas para relatar uma iniciação na
arte de cantar benditos. Para os líderes religiosos leigos – beatas,
penitentes, tiradeiras de renovação ou de sentinelas, é imprescindível possuir
um profundo conhecimento do repertório musical, de cuja habilidade advém grande
parte do reconhecimento que lhes são dispensados. A capacidade de memorizar e
cantar grandes quantidades de benditos é sempre atribuída a uma dádiva
concedida por Deus, que se apresenta desde tenra infância. O canto é parte essencial
das cerimônias religiosas, não apenas como mera expressão interlocutória
realizada entre orações, mas na condição mesma de reza, e de reza mais poderosa
do que as faladas, sejam nas rápidas novenas, sejam nos intermináveis pernoites
“cantando o morto”.
Sob a acusação de serem agourentos e de fazerem recair
sobre quem os escuta algum tipo de infortúnio, os benditos antigos passaram a
ser rechaçados por parte da população de Juazeiro do Norte. A investigação que
empreenderemos parte desse fenômeno de recepção musical, contemplando além da
música e do contexto cultural todo um léxico de sutilezas acústicas e corporais
mobilizadas durante a performance
musical. Nesse sentido, concentraremos nossos esforços na investigação dessa modalidade
de canto, ou, antecipando a nossa análise, dessa forma de cantar.
2.1
Breve inventário sobre o canto popular religioso
no Nordeste
Para realizarmos este trabalho foi imprescindível
recorrermos a registros sonoros que produzimos em pesquisas anteriores, bem
como servirmo-nos de fontes complementares provindas da literatura, do cinema e
de folhetos de cordéis, as quais possibilitassem a realização de um inventário
sobre o caráter sonoro atribuído aos antigos benditos, bem como aos usos
relativos ao seu canto. Apresentaremos a seguir uma interpretação desse
material, conteúdo fundamental para embasar algumas de nossas conclusões, sobretudo
devido às limitações decorrentes dos impedimentos de falar sobre práticas
devocionais antigas.
Primeiro inventário: literatura e cinema
As primeiras informações de que se dispõe sobre esse
repertório musical resumem-se a rápidas inserções constantes na literatura que
abordou o catolicismo popular do Nordeste na primeira metade do século XX.
Insuficientes para fornecer detalhes que permitam uma reflexão aprofundada
sobre aspectos musicológicos, mas relevantes para atestarem a utilização da
música como importante instrumento devocional, essas fontes literárias
constituem a única via para se ter acesso aos usos, ao caráter e a alguns
textos dos primeiros cânticos populares vinculados ao catolicismo que se
estabeleceu no sertão do Nordeste.
Um dos primeiros temas da religiosidade popular
nordestina, que inspirou significativa produção literária, foi certamente a
questão envolvendo o povoado de Belo Monte no Estado da Bahia, a guerra de
Canudos. Nos escritos relativos à curta existência desse arraial, começando em
1893 com a chegada do beato Antônio Vicente Mendes Maciel – Antônio
Conselheiro, e terminando com a sua completa destruição quatro anos depois,
encontram-se várias ocorrências que sugerem o cultivo do canto religioso na
devoção ali praticada. A despeito das severas revisões críticas a que foram
submetidas as ideias de Euclides da Cunha em relação à postura religiosa e
política de Antônio Conselheiro alvitradas em Os Sertões, a sensibilidade do autor em relação à importância do
repertório musical rendeu algumas informações importantes sobre o uso de
cânticos nas atividades religiosas lideradas pelo beato[1].
As rezas em geral prolongavam-se. Percorridas as escalas das
ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava a
cerimônia final do culto, remate obrigatório daquelas. Era o Beija das imagens
(CUNHA , 1991, p. 136).
Em um estudo etnomusicológico sobre a música de
Canudos Eurides Santos (1998) ressalta que as menções ao canto religioso em Os Sertões permitem supor a intenção de
o escritor suscitar no texto um paralelo entre o uso da música religiosa e as
tensões vivenciadas pela comunidade de Canudos, como se recorresse a “fases” do
canto para traçar um gráfico da trajetória do movimento. Valendo-se de relatos
de sobreviventes e de escritos de jornalistas da época que visitaram o local, a
autora realiza um inventário que denota a expressiva utilização de cânticos
religiosos, dois dos quais bastante caros à religiosidade popular de Juazeiro
do Norte: o Ofício da Imaculada Conceição
e a Ladainha de Nossa Senhora.
Transcrevemos abaixo um depoimento do jornalista Manuel Benício, testemunha
ocular da guerra de Canudos, sobre a frequência do canto de benditos nesse
arraial:
À noite naqueles sertões despovoados e solitários, quantas vezes,
as vozes dos devotos não se ergueram, cantando benditos e entoando orações à
Mãe de Jesus? (1899 apud, SANTOS, 1998, p. 39)[2]
As primeiras referências sobre a presença de cânticos
religiosos populares em Juazeiro do Norte advêm de esporádicas menções na
literatura do começo do século XX que abordou a conjuntura do “milagre de
Juazeiro” e as questões religiosas envolvendo o apostolado do Padre Cícero
Romão Batista. Seguindo a voga positivista da época, que compreende os
fenômenos religiosos populares como desvios, distorções, aberrações de um
modelo genuíno de religião, as esparsas referências à música religiosa carregam
geralmente o mesmo ímpeto etnocêntrico. Enfatizando apenas a dimensão exótica
dos cânticos, os autores recorriam a pejorativos sonoros para render-lhes
alcunhas que ressaltassem um caráter supostamente bizarro, sendo comum
associá-los a gemidos, uivos e murmúrios, frutos da expressão lúgubre de uma
crença alienada e supersticiosa de romeiros, beatos e penitentes, como ilustra
o depoimento de Lourenço Filho:
Da sombra da mata, chega-nos, de espaço, um marulhar de vozes
indistintas, ou a plangência de um canto lúgubre, que o vento entrecorta em
dolorosos soluços. É um grupo de romeiros em oração (Sd. , p. 27)[3].
As menções literárias mais frequentes restringem-se a
ressaltar o caráter lamentoso dos cânticos, geralmente associados às cerimônias
de autoflagelação praticadas por ordens de penitentes. Na ausência de gravações
sonoras e mesmo de transcrições musicais consignadas nos textos, os indícios da
sonoridade desses cânticos limitam-se a expressões subjetivas mobilizadas para
ressaltar uma expressão lúgubre. A Ladeira do Horto, principal fonte
etnográfica para nossa pesquisa, é mencionada no clássico Mistérios de Joazeiro (DINIZ, 2011), quando o autor recorre ao
testemunho do padre Cícero Torres para ressaltar a existência de ordens de
penitentes em Juazeiro do Norte, as quais se ouviam cantar nas madrugadas já no
princípio da formação da cidade.
Os penitentes, durante o começo da cidade do Juazeiro,
cantavam o rosário das almas do purgatório, à meia-noite no cemitério (hoje
fechado e à Rua Nova ou Avenida Dr. Floro). Depois tal grupo tornou-se tão
numeroso, que, algumas noites, iam mais de 600 deles, cantar e se disciplinar
[flagelar] aos pés das cruzes e de cruzeiros localizados nas encostas da Serra
do Horto (2011, p. 147)[4].
Além das cerimônias de autoflagelação, as menções
literárias relativas a antigos velórios realizados em Juazeiro do Norte
constituem outra fonte relevante sobre o cultivo do canto religioso nos ofícios
devocionais do sertão nordestino. Transcrevemos um depoimento que Otacílio
Anselmo prestou ao pesquisador Abelardo Montenegro no período da presença de
seu destacamento militar em Juazeiro do Norte, após a revolução de 1930. Nesse
relato, ele narra uma ocasião em que presenciou um desses velórios, durante o
qual dezenas de romeiros cantavam o morto madrugada adentro.
Após a revolução de
30, fiquei com um destacamento do 23 BC em Juazeiro. Várias noites fui
despertado com o canto melancólico dos benditos fúnebres, vindo dos chamados
ariscos (arrebaldes). Certa noite, reuni alguns soldados, me dirigi para os
lados do Horto, de onde vinham os aterradores cânticos. Numa habitação
miserável, quase uma centena de romeiros se acotovelavam em torno de um
defunto, à luz de compridas velas. Antes de entrar na casinha contemplei a
cena. Um velho puxava o bendito. Era o centurião. Os demais respondiam em coro,
alguns em convulsivo pranto. Por vezes, pedi que cantassem em voz baixa,
ameaçando-os mesmo de prisão. A cantilena continuou, porém, até o amanhecer (apud
MONTENEGRO, 1973, p. 63).
Apesar de nossa pesquisa não utilizar o registro
fílmico para escrutinar sincronias entre imagem e som, tampouco para inferir
precisão ao processo de transcrição musical, um conjunto de documentários
cinematográficos sobre o sertão do Nordeste, produzidos a partir da segunda
metade da década de 1960, constitui preciosa fonte etnográfica sobre a performance do canto religioso e sobre o
caráter sonoro das entonações dessa época. Movidos por um ímpeto criativo que
abandonava a abordagem didática que marcou a produção documentária do INCE –
Instituto Nacional de Cinema Educativo, um grupo de jovens cineastas brasileiros
iniciou um projeto que visava, segundo seu produtor e idealizador, o fotógrafo
húngaro Thomas Farkas, “mostrar o Brasil aos Brasileiros”. Esse empreendimento,
para o qual Eduardo Escorel posteriormente cunharia o título de Caravana Farkas, dedicou uma atenção
especial à religiosidade nordestina, e em particular à devoção ao Padre Cícero
e às romarias de Juazeiro do Norte, concretizando-se, dentre outros trabalhos,
nos filmes Viva Cariri (Geraldo
Sarno, 1970) e Visão de Juazeiro
(Eduardo Escorel, 1970).
Dentre o conjunto de filmes produzidos nessa época, um
documentário interessa-nos especialmente por conta dos preciosos registros
sonoros que disponibiliza. Ainda que não tenha sido classificado como
integrante da Caravana Farkas, O Povo do
Velho Pedro compartilha a mesma atmosfera de reflexão sobre a produção de
documentários de caráter sociológico[5].
Recorrendo constantemente a registros sonoros captados no local, o filme
divide-se em duas partes: a primeira enfoca a cidade de Juazeiro do Norte no Ceará,
na década de 1930; a segunda retrata a religiosidade do Município de Santa
Brígida na Bahia no ano de 1967, em particular a devoção ao Beato Pedro
Batista. Através da conexão entre o apostolado do Padre Cícero em Juazeiro do
Norte e as realizações de Pedro Batista em Santa Brígida, juntamente com as
comparações entre o primeiro e Antônio Conselheiro, o filme revela o seu eixo
narrativo principal, a saber, realizar uma leitura da religiosidade popular de
Juazeiro do Norte e de Santa Brígida a partir de uma linha argumentativa,
visível sobretudo na enunciação do narrador, que ressalta a alienação religiosa
e postula a favor da existência de certa inclinação messiânica nos devotos do
sertão nordestino.
Semelhante ao que ressaltamos em relação aos primeiros
textos literários, que a despeito de sua orientação etnocêntrica e
evolucionista, constituem uma importante fonte histórica em relação ao uso do
canto religioso na primeira metade do século passado, a produção
cinematográfica, mesmo sem grandes compromissos com a documentação do
repertório musical, disponibilizou um rico material sonoro sobre as músicas
religiosas da época. O Povo do Velho
Pedro constitui-se numa fonte audiovisual preciosa para estudos referentes
à música religiosa cantada e tocada no sertão nordestino na década de 1960.
Música de reisado, bandas de pife, cantigas de cego, cantos e performances dos guerreiros de São Jorge
e dos guerreiros de São Gonçalo, o canto e a dança dos Praiás realizados pelos
índios Pankararus – PE, além de uma trilha musical composta de benditos
coletados na região de Juazeiro do Norte e de Santa Brígida compõem a
expressiva banda sonora do filme de Sérgio Muniz.
Segundo inventário: devocionários e cordéis
Notamos que em função das circunstâncias demandadas
para o canto de determinados benditos, alguns rezadores se recusavam a
executá-los na forma cantada, sendo às vezes possível registrarmos apenas “a
fala”, ou seja, ouvi-los apenas recitados, formato que supostamente retiraria
do bendito parte de sua força e, portanto, simplificaria os rigores exigidos
para seu canto. Por esse motivo, a gravação dos benditos considerados mais
poderosos – conhecidos por “benditos fortes”, oferecia maiores dificuldades, em
alguns casos intransponíveis, como nos explicou o líder da Ordem de Penitentes Ave
de Jesus[6],
em relação ao bendito O Sonho de Nossa
Senhora:
Esse bendito eu só posso dizer ele sem a “solfa” [melodia], só
falando as palavras, porque se não fica muito pesado; pra cantar tem que ser
nas horas certas, porque não é brincadeira. Porque rezado é oração, cantado é
hino, é bendito. Vou dar uma explicação: é melhor cantar hino, glórias a Deus,
do que rezar um rosário na hora do meio-dia no mês de janeiro em cima das
pedras duras, de joelhos. Cantar são dois votos de coração: mental e vocal.
O fato de ser
permitida apenas a declamação do texto de determinados benditos em situações em
que não está autorizado o seu canto, além de reforçar o nosso argumento sobre a
supremacia do poder sagrado de algumas músicas em relação às orações faladas,
incitou-nos a examinar outra questão. A récita dos textos articulava
notoriamente uma prosódia que remetia àquela usada na declamação de cordéis. A
inflexão e as rimas entre frases, o ritmo da declamação, a regularidade da métrica
poética dos versos e a própria “musicalidade” da entonação constituíam
elementos que suscitavam a influência da literatura de cordel na constituição
do repertório musical, seja reproduzindo textos de benditos recolhidos da
tradição oral, seja fornecendo poesias que serviriam de base textual para composições
de melodias.
O aprofundamento desta questão, o que demandaria uma
longa e específica investigação, foge ao objetivo de nosso estudo. Todavia,
motivados por essa provocação, passamos a adquirir folhetos de cordel antigos
na intenção de localizar referências textuais que constituíssem indícios de um
processo de transmissão de conhecimento “musical”. Interessava-nos também
investigar no texto e no conteúdo iconográfico das capas dos folhetos antigos
aquilo que, por hipótese, postulávamos em relação à performance musical e à sonoridade mesma dos benditos, ou seja, o predomínio
de referências ao sofrimento, ao pecado e ao inferno, conteúdo extremamente
reduzido no contexto católico atual. Apesar de essa investida ter surtido
rendimento apenas modesto, seja pela dificuldade de localizar folhetos antigos
com textos de benditos, seja pelo fato de não trazerem menção à data de
impressão, ela possibilitou compararmos reedições atuais de antigos cordéis com
versões cuja tipologia dos caracteres indicava tratar-se de impressão mais
antiga. Cotejando-as, percebemos que algumas reimpressões recentes removeram
das capas e mesmo de passagens do texto menções textuais diretamente
relacionadas ao inferno. Chamaram atenção em especial as duas versões que
recolhemos do Bendito da Quinta-Feira [A39],
sobretudo em relação à forma com que a versão moderna finaliza a narração da
Paixão, sobretudo na estrofe que relata a morte de Jesus[7].
Denunciando
filiar-se a orientações doutrinárias mais recentes, o folheto atual narra que
depois da morte de Jesus “Sua alma subiu, foi pedir ao Eterno...”,
enquanto que a versão antiga, sob o título de Bendito de Jesus no Horto, narra que “Sua alma desceu, foi ao
inferno”. Com implicações doutrinárias óbvias, a versão antiga preserva um
conhecimento tradicional católico sob a visita de Jesus Cristo aos infernos
depois de sua morte, na intenção de libertar as almas aprisionadas no limbo. Na
nova versão, para conseguir essa libertação, em vez de descer ao inferno, sua
alma sobe até o céu para pedir pelas almas do limbo[8].
Transcrevemos abaixo as duas estrofes que comentamos, conforme redação dos
folhetos, em seguida, anexamos fotografias referente às capas e às páginas que
contêm as estrofes.
Quase sempre guardados como se fora uma relíquia
sagrada, os folhetos e livros antigos raramente nos eram apresentados, mesmo
nas ocasiões de nossas primeiras visitas no ano de 2000, sob o argumento de
estarem muitos velhos ou de “pertencerem” a um parente falecido. Constatamos, entretanto,
a existência de folhetos antigos referentes ao ritual de entronização do
Sagrado Coração de Jesus, à novena de Nossa Senhora das Dores, à Novena do Mês
das Almas, além de alguns breviários. Verificamos a presença de raros
exemplares das Horas Marianas e da Missão Abreviada, este último,
considerado pelos devotos da religiosidade penitente de Juazeiro o mais
precioso de todos os textos religiosos, encontrando-se muitas vezes escondidos
pelos seus proprietários. Encerramos este tópico apresentando a transcrição de
um trecho da Missão Abreviada, cujo
teor, que prevalece em todo livro, ratifica o valor da penitência enquanto
dispositivo religioso imprescindível à salvação da alma. Esta orientação é
perfeitamente afinada com os preceitos da religiosidade penitente de Juazeiro
do Norte, para cujos devotos esse livro guarda o grande tesouro da vida
espiritual. Na sequência, apresentamos fotografias de alguns folhetos e livros
antigos que encontramos nas casas que visitamos.
Por isso, se te queres salvar, pecador, cuida já em reformar a
tua vida, e fazer uma verdadeira penitência; vai-te entregando aos jejuns, às
disciplinas, aos cilícios e às mortificações; não digas que te doem, porque
mais há de doer o fogo do inferno por toda eternidade; não digas que te custa,
porque mais há de custar um só momento no meio desse fogo devorador; não digas
também que és fraco, que não podes, porque tu bem valente tens sido para
ofender a Deus; paga, pois, porque deves; paga agora com pouco o que depois não
podes pagar ainda com tormentos eternos; cuida pois já em converter-te para Deus,
para o que recorre a Maria Santíssima, dizendo: Ó minha Mãe, ajudai-me,
Senhora; eu não sabia que coisa era o inferno; estava cego de todo; vivia nas
maiores misérias; porém agora estou desenganado, estou resolvido e quero
salvar-me, minha Mãe: antes quero morrer, antes cair no inferno, que tornar a
ofender o meu Deus. Ajudai-me, pois, Senhora, e não permitais que eu chegue a
odiar-vos e a maldizer-vos para sempre no inferno; salvai-me, esperança minha,
salvai-me do inferno; e antes disso livrai-me de todo o pecado, que só ele me
pode condenar ao inferno; de vós eu espero as graças que me são necessárias
para fazer uma boa confissão, emendar toda a culpa, e dar-me todo a Deus
(COUTO, 1859, p. 84).
[1]
Sobre uma possível estada de Antônio Conselheiro em Juazeiro do Norte, Manuel
Diniz declara que “nunca nos lembramos de conversar com o Patriarca [Padre
Cícero], mas temos razões para afirmar que ele jamais esteve aqui, pois, antes
de 1875, ele já era beato nos sertões baianos” (DINIZ, 1935, P. 211).
[2]
BENÍCIO, Manuel. O Rei dos Jagunços.
Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1899.
[3]
Consultamos a 2ª edição dessa obra, na qual não consta menção à data de
publicação. A primeira edição data de 1926.
[4]
O exemplar consultado refere-se à segunda edição (2011) publicada na Coleção
Centenário, cópia integral da edição original de 1935.
[5]
A expressão alude à categoria “modelo sociológico” segundo a perspectiva utilizada
por Jean-Claude Bernardet na análise dos curtas-metragens Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Subterrâneos do Futebol (Maurice Capovilla, 1965), a qual
toma como foco analítico a forma como se apresenta ou se constrói a autoridade
sobre a enunciação dos temas retratados pelo filme.
[6]
Sobre essa ordem de penitentes apresentaremos maiores detalhes posteriormente,
quando comentarmos o processo de gravação do bendito Pranto de Nossa Senhora. Para ouvir a declamação do texto do
bendito O Sonho de Nossa Senhora,
conferir arquivo de áudio n° 47 constante no DVD de acervo que integra este trabalho. A partir desse momento indicaremos os arquivos de áudio por meio da legenda [Ax], onde "x" indica a ordem numérica da gravação sonora.
[7]
Encontramos ocorrências dessa natureza também em relação ao bendito Maria Valei-me, cuja discussão
apresentaremos posteriormente.
[8]
Note-se que esta referência doutrinária também foi objeto de alteração no texto
atual da oração do Credo católico,
que dentre outras modificações, substituiu “inferno” por “mansão dos mortos”.
Como já o dissemos, não cumpre a esta pesquisa adentrar as implicações
doutrinárias relacionadas a tais mudanças.
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