Como acontecerá com algumas postagens, este texto não trata
diretamente do repertório musical. A intenção de incluí-la sobrevém da
importância da Sala do Coração de Jesus para o catolicismo penitente de
Juazeiro do Norte, cujos componentes principais de sua iconografia encontram-se
emoldurados e organizados em pequenos altares domésticos, conteúdo que, como
comentaremos posteriormente, guarda relações sutis com o repertório musical.
A receptividade dos moradores da Ladeira do Horto em relação
às nossas visitas era a melhor possível, sobretudo quando anunciávamos que
nosso contato devia-se a um estudo sobre a devoção ao Coração de Jesus, para o
que se colocavam plenamente solícitos. Gentilmente convidados a adentrar as
casas, éramos frequentemente indagados sobre a nossa pesquisa e logo em seguida
passávamos a conversar sobre os altares: as principais imagens, como organizar
os objetos, cuidados com a sala, promessas e milagres, tudo era comentado. Um
fato recorrente nessas conversas era o orgulho com que os moradores narravam o
episódio da chegada da imagem do Coração de Jesus na casa, uma espécie de
batismo da moradia, uma dádiva digna de gratidão eterna. Dona Francisca,
emocionada, lembrou a chegada da imagem, cuja história se confundia com a de
seu pai, falecido há bem pouco tempo.
Quando meu pai fez essa casa, ele comprou essa imagem do
Coração de Jesus e levou pro meu padrim [Padre Cícero] benzer. Depois que a
sala estava preparada ele chamou uma beata que ele conhecia pra fazer a
entronização. Depois veio morar aqui com a minha mãe. Ele tá ali no retrato
[aponta para um retrato pintado dependurado na parede].
Ele morreu nessa sala, de frente pro seu Coração de Jesus.
Além da bênção comum que autoriza a veneração de
imagens e objetos religiosos, o quadro do Coração de Jesus que irá presidir o
altar doméstico deve ser submetido a um rito de entronização. Assim, depois de
comprada, a imagem é levada a um padre ou, mais frequentemente, depositada por
alguns instantes sobre o túmulo do Padre Cícero, para tornar-se benta;
posteriormente, os donos da casa convidam uma beata ou uma rezadeira para que
coordene a cerimônia de entronização. Este procedimento é realizado no interior
do espaço onde será fixada a imagem e visa constituir entre a família e a
imagem do Sagrado Coração de Jesus um vínculo devocional vitalício, cujos efeitos
sacramentais são infligidos também ao cômodo que acolheu o quadro, a partir de
então chamado “Sala do Coração de Jesus”. Dona Marina explicou em detalhes estes
dois procedimentos:
A gente compra o quadro do Coração de Jesus e leva para
benzer. Porque antes era só um pedaço de pau ou de gesso, depois da bênção ele
fica diferente, já obra milagre. Quando eu levo imagem pra benzer, eu prefiro
colocar a imagem nos pés do meu padrinho, lá eu sei que fica benzida!
Os padres de hoje não dizem mais as palavras, nem batina eles usam. Depois, a
gente escolhe uma data pra entronizar, aí chama uma tiradeira de renovação para
fazer a entronização. Aí nos outros anos, no mesmo dia, tem de fazer uma
renovação, não pode esquecer, é pro resto da vida.
Uma vez realizada a entronização da imagem do Coração
de Jesus, nos anos subsequentes realizar-se-á, no mesmo dia, a cerimônia de
renovação da entronização, ou simplesmente, Renovação,
como é chamada em Juazeiro do Norte. É comum se realizar a renovação em uma
data significativa para a família, optando-se, na maioria das vezes, pelo dia
do casamento dos donos da casa. Como nos advertiu Dona Tecla, no dia da
cerimônia toda a sala deve estar “renovada”; as cortinas e as toalhas lavadas,
as imagens dos santos e os retratos bem lustrados e, se possível, as paredes
pintadas. As flores do altar também devem ser trocadas, para o que são
mobilizados procedimentos especiais. Contagiadas pelo poder sagrado da imagem
que adornam, quando substituídas, não podem ser descartadas simplesmente, mas
devem ser queimadas, e suas cinzas recolhidas viram um bálsamo milagroso que
trata males do corpo e da alma. Mestre Aldenir, mestre de reisado da cidade do
Crato, residindo atualmente na Ladeira do Horto, explica o seu processo de
troca de flores:
A gente retira aquelas flores com cuidado, bota num lençol
branco pra não se perder nenhuma, faz uma fogueirinha e queima elas. Pega as
cinzas e guarda pra curar cabeça, garganta, um monte de doenças. Tem gente que
fica curado mesmo. Hoje ninguém acredita mais, mas antes era como um milagre.
O texto referente ao rito oficial de entronização, o
mesmo utilizado nas renovações realizadas em Juazeiro do Norte, consta em
folhetos similares aos usados para impressão de cordéis, produzidos na própria
cidade. Apesar de ser prescrita a participação de um sacerdote católico, na
Ladeira do Horto essas cerimônias são presididas por moradores leigos,
designados de tiradores ou tiradeiras de renovação, os quais
acrescentam ao texto fixo do rito evocações e cânticos representativos para a
região. Recolhemos em pontos de venda de cordéis dois folhetos em que consta a
íntegra deste rito, um editado pela gráfica Royal em Juazeiro do Norte, outro
pela gráfica Cajazeiras, no estado da Paraíba. Ambos são idênticos em seu
conteúdo, diferenciando-se ligeiramente na ilustração da capa, como se vê nas
imagens abaixo.