quinta-feira, 24 de julho de 2014

Terceiro inventário: nossas gravações antigas

Favorecidos pela nossa experiência prévia com a religiosidade popular do Cariri, sabíamos, desde o início dessa pesquisa, que seria contraproducente implementar propostas de trabalho que dependessem da documentação massiva do repertório musical, ou que condicionassem a realização da pesquisa à produção recente de uma amostra etnográfica expressiva, seja em relação a informantes capazes de nos relatar sobre o uso e o sentido dos benditos antigos, seja em relação a registros sonoros ou audiovisuais desses cânticos. Assim, dentro de nossa realidade etnográfica, em que o nosso objeto de pesquisa aparece como um vestígio de um modo antigo de conceber uma experiência religiosa, e portanto raro de se documentar, cumpriu-nos assumir uma postura etnográfica compatível com este cenário.
Graças a pesquisas que havíamos realizado anteriormente, no início de nossa pesquisa de doutorado já contávamos com um considerável acervo de gravações de entrevistas e de benditos, de alguns dos quais estávamos completamente esquecidos e que foram redescobertos durante a audição de fitas antigas que havíamos acumulado desde a nossa primeira passagem pelo sertão do Cariri, no ano de 2000. Como ponto de partida, dedicamo-nos a realizar um exame minucioso dessas gravações e entrevistas, na intenção de localizar, dentro desse repertório, indícios sobre juízos de valor referentes a determinadas músicas, bem como justificativas que explicassem o seu mérito especial. Além da contribuição material fornecida por esse repertório de gravações antigas, o ato de reouvi-las revelou-se parte de um processo de conhecimento que não se esgotava na compreensão do dado sonoro, uma vez que incitava a experiência inevitável de relembrar as circunstâncias do registro, para muito além do fenômeno acústico. Esse exercício excitava a memória e lhe investia de maior argúcia em lembrar detalhes visuais do encontro; não raro, irrompiam faces, gestos e olhares que atualizavam a performance musical e emprestavam às gravações maior relevância etnográfica[1].
No conjunto de mensagens e narrativas de seus textos, os benditos antigos apresentam talvez a compilação mais próxima do que seria a expressão verbal daquilo que estamos chamando de religiosidade penitente. São “catecismos” orais que resumem ensinamentos doutrinários, dão exemplos de resignação rememorados na história de vida de algum santo, ministram profissões de fé e prédicas de ação de graças. Alguns desses textos apresentam, versificadas, longas narrativas baseadas em passagens do evangelho, sobretudo remissões aos sofrimentos de Jesus Cristo. Há ainda os benditos que apresentam versões musicadas de algumas das principais orações do léxico católico, como a Salve Rainha, a Ladainha de Nossa Senhora e o Confiteor.
Por intermédio desse inventário e da produção etnográfica recente, anotamos algumas recorrências que suscitaram uma ordenação do repertório, levando em conta o assunto mobilizado pelo texto e o uso a que se presta(va) o canto dos benditos. São muito comuns benditos destinados a homenagear um determinado santo, predominando em Juazeiro do Norte aqueles direcionados ao Padre Cícero, ao Frei Damião e a Nossa Senhora das Dores; entretanto, recolhemos outros destinados à veneração de São Miguel, de São Francisco, de Sant’Ana e de São Sebastião, santos muito cultuados na cidade. Verificamos também o uso da designação “benditos para o caminho”, para aludir a um tipo de música de uso comum nas romarias, cantada em cima dos “paus-de-arara”, caminhões improvisados para o transporte de romeiros, ou dentro de ônibus fretados para conduzir os devotos até Juazeiro do Norte. Há também benditos destinados a datas especiais: benditos de Nossa Senhora das Candeias; benditos para Semana Santa; benditos para o Natal; benditos para os Santos Reis, dentre outros. As estrofes abaixo ilustram o texto inicial de algumas dessas músicas[2]:

·      Bendito da estrada:

Tirei a chave da porta
Botei os pés no caminho
No rumo de Juazeiro:
Pedir “bença” a meu Padrinho.

·      Bendito de São Miguel:

Deu uma hora o sino tocou
São Miguel no céu as almas pesou
Valei-me Senhora venha me ensinar
Os caminhos do céu pra eu não errar.

·      Bendito de Sant’Ana:

Senhora Sant’Ana cheia de alegria
Nós somos devotos da Virgem Maria
Senhora Sant’Ana já subiu nos montes
Há! Onde ela andou deixou uma fonte
Que fonte tão doce senhora tão bela
Desceu dois anjos e bebeu água nela.

·      Bendito dos Três Cravos:

Três cravos os pés e as mãos pregou Jesus no madeiro
A lança aguda traspassou seu coração
A José e Maria foi uma augusta aflição
Chora José e Maria em um pranto amargurado
Vendo o seu filho inocente neste mundo abandonado,
Preso entre dois ladrões em um madeiro cravado.
Prenderam-no em um madeiro foi quando o galo cantou.
Chegou José e João e o corpo de Jesus tirou.
Envolveram-no em um lençol e para o sepulcro o levou.
Era uma pedra rocha que José tinha guardado
Para sepultar seu corpo ele tinha preparado.
O corpo de Jesus Cristo foi onde foi sepultado
Ofereço esse bendito a Jesus Sacramentado,
Que nos livre dos castigos e perdoe nossos pecados.
Com incenso e mirra foi o sepulcro incensado[3].

Na religiosidade penitente de Juazeiro do Norte o significado e os efeitos do canto dos benditos fortes advêm, sobretudo, de um entendimento religioso para o qual a experiência penitencial é prerrogativa para a salvação da alma. Se a forma dos altares domésticos propicia uma experiência de contemplação do sofrimento do Coração de Jesus e da corte celeste que o rodeia, o que predomina no canto dos benditos fortes é uma experiência de participação “real” no sofrimento engendrado pela narrativa, cuja eficácia, como mostraremos posteriormente, é garantida pelo exercício de uma performance que visa consignar no corpo uma forma particular, cuja compleição pretendida parece tomar como referência visual a efígie de algum santo do altar doméstico, num exercício de mimese que mais do que elaborar semelhanças visuais logra compartilhar com ele o seu martírio.


[1] A contribuição dessa experiência de memória musical não se restringiu ao desenvolvimento da reflexão sobre o repertório das músicas religiosas, mas ajudou relembrarmos as salas de santos das casas da Ladeira do Horto que visitamos e as beatas com quem conversamos na ocasião de nossas primeiras visitas a Juazeiro do Norte – suas fisionomias, silêncios e indumentárias, época em que sequer supúnhamos a idealização desta pesquisa.
[2] Em função da extensão da maioria dos benditos, os exemplos que incluiremos no corpo do texto correspondem à seleção de trechos mais significativos.
[3] A gravação a partir da qual transcrevemos esse texto foi restaurada a partir de uma registro realizado pela professora Isaíra Silvino na década de 1970, junto à Ordem de Penitentes do Sítio Cabeceiras, Barbalha-CE, município que faz fronteira com Juazeiro do Norte. Note-se no texto, como é comum suceder aos benditos que narram a crucifixão e o martírio de Jesus, o destaque fornecido a dor de Nossa Senhora pela morte do filho inocente.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Segundo inventário: devocionários e cordéis

Notamos que em função das circunstâncias demandadas para o canto de determinados benditos, alguns rezadores se recusavam a executá-los na forma cantada, sendo às vezes possível registrarmos apenas “a fala”, ou seja, ouvi-los apenas recitados, formato que supostamente retiraria do bendito parte de sua força e, portanto, simplificaria os rigores exigidos para seu canto. Por esse motivo, a gravação dos benditos considerados mais poderosos – conhecidos por “benditos fortes”, oferecia maiores dificuldades, em alguns casos intransponíveis, como nos explicou o líder da Ordem de Penitentes Ave de Jesus, em relação ao bendito O Sonho de Nossa Senhora:
Esse bendito eu só posso dizer ele sem a “solfa” [melodia], só falando as palavras, porque se não fica muito pesado; pra cantar tem que ser nas horas certas, porque não é brincadeira. Porque rezado é oração, cantado é hino, é bendito. Vou dar uma explicação: é melhor cantar hino, glórias a Deus, do que rezar um rosário na hora do meio-dia no mês de janeiro em cima das pedras duras, de joelhos. Cantar são dois votos de coração: mental e vocal.
O fato de ser permitida apenas a declamação do texto de determinados benditos em situações em que não está autorizado o seu canto, além de reforçar o nosso argumento sobre a supremacia do poder sagrado de algumas músicas em relação às orações faladas, incitou-nos a examinar outra questão. A récita dos textos articulava notoriamente uma prosódia que remetia àquela usada na declamação de cordéis. A inflexão e as rimas entre frases, o ritmo da declamação, a regularidade da métrica poética dos versos e a própria “musicalidade” da entonação constituíam elementos que suscitavam a influência da literatura de cordel na constituição do repertório musical, seja reproduzindo textos de benditos recolhidos da tradição oral, seja fornecendo poesias que serviriam de base textual para composições de melodias.
No Brasil, segundo Câmara Cascudo, o uso de orações parafraseadas em versos rimados remonta ao século XVI. Baseando as primeiras ocorrências no registro constante no Tratado da Terra e Gente do Brasil de autoria de Fernão Cardim (1939), o folclorista atribui aos padres da Companhia de Jesus a introdução dessa modalidade de prece em terras brasílicas. A despeito da provável pertinência de sua afirmação, Cascudo (Sd.) considera as orações rimadas brasileiras como um “resquício da tradição clássica literária”, creditando a elas um atavismo satírico próprio aos seus supostos predecessores lusitanos, como é o caso de “Anjo Bento” da lavra de Gregório de Matos, e conclui tratar-se de um “gênero meio-morto do folclore sertanejo” (Sd. p. 72). Apesar de reconhecer a vastidão do repertório de orações rimadas, a interpretação de Câmara Cascudo, tanto em relação ao caráter satírico, como ao desaparecimento desse gênero, não encontra respaldo empírico em nosso estudo, por intermédio do qual podemos asseverar o uso corrente de tais orações, cantadas ou faladas, sempre com um discurso que exibe profunda deferência religiosa.
O aprofundamento desta questão, o que demandaria uma longa e específica investigação, foge ao objetivo de nosso estudo. Todavia, motivados por essa provocação, passamos a adquirir folhetos de cordel antigos na intenção de localizar referências textuais que constituíssem indícios de um processo de transmissão de conhecimento “musical”. Interessava-nos também investigar no texto e no conteúdo iconográfico das capas dos folhetos antigos aquilo que, por hipótese, postulávamos em relação à performance musical e à sonoridade mesma dos benditos, ou seja, o predomínio de referências ao sofrimento, ao pecado e ao inferno, conteúdo extremamente reduzido no contexto católico atual. Apesar de essa investida ter surtido rendimento apenas modesto, seja pela dificuldade de localizar folhetos antigos com textos de benditos, seja pelo fato de não trazerem menção à data de impressão, ela possibilitou compararmos reedições atuais de antigos cordéis com versões cuja tipologia dos caracteres indicava tratar-se de impressão mais antiga. Cotejando-as, percebemos que algumas reimpressões recentes removeram das capas e mesmo de passagens do texto menções textuais diretamente relacionadas ao inferno. Chamaram atenção em especial as duas versões que recolhemos do Bendito da Quinta-Feira [A39], sobretudo em relação à forma com que a versão moderna finaliza a narração da Paixão, sobretudo na estrofe que relata a morte de Jesus.
Denunciando filiar-se a orientações doutrinárias mais recentes, o folheto atual narra que depois da morte de Jesus “Sua alma subiu, foi pedir ao Eterno..., enquanto que a versão antiga, sob o título de Bendito de Jesus no Horto, narra que “Sua alma desceu, foi ao inferno”. Com implicações doutrinárias óbvias, a versão antiga preserva um conhecimento tradicional católico sob a visita de Jesus Cristo aos infernos depois de sua morte, na intenção de libertar as almas aprisionadas no limbo. Na nova versão, para conseguir essa libertação, em vez de descer ao inferno, sua alma sobe até o céu para pedir pelas almas do limbo[1]. Transcrevemos abaixo as duas estrofes que comentamos, conforme redação dos folhetos, em seguida, anexamos fotografias referente às capas e às páginas que contêm as estrofes[2].







Quase sempre guardados como se fora uma relíquia sagrada, os folhetos e livros antigos raramente nos eram apresentados, mesmo nas ocasiões de nossas primeiras visitas no ano de 2000, sob o argumento de estarem muitos velhos ou de “pertencerem” a um parente falecido. Constatamos, entretanto, a existência de folhetos antigos referentes ao ritual de entronização do Sagrado Coração de Jesus, à novena de Nossa Senhora das Dores, à Novena do Mês das Almas, além de alguns breviários. Verificamos a presença de raros exemplares das Horas Marianas e da Missão Abreviada, este último, considerado pelos devotos da religiosidade penitente de Juazeiro o mais precioso de todos os textos religiosos, encontrando-se muitas vezes escondidos pelos seus proprietários. Encerramos este tópico apresentando a transcrição de um trecho da Missão Abreviada, cujo teor, que prevalece em todo livro, ratifica o valor da penitência enquanto dispositivo religioso imprescindível à salvação da alma. Esta orientação é perfeitamente afinada com os preceitos da religiosidade penitente de Juazeiro do Norte, para cujos devotos esse livro guarda o grande tesouro da vida espiritual. Na sequência, apresentamos fotografias de alguns folhetos e livros antigos que encontramos nas casas que visitamos.
Por isso, se te queres salvar, pecador, cuida já em reformar a tua vida, e fazer uma verdadeira penitência; vai-te entregando aos jejuns, às disciplinas, aos cilícios e às mortificações; não digas que te doem, porque mais há de doer o fogo do inferno por toda eternidade; não digas que te custa, porque mais há de custar um só momento no meio desse fogo devorador; não digas também que és fraco, que não podes, porque tu bem valente tens sido para ofender a Deus; paga, pois, porque deves; paga agora com pouco o que depois não podes pagar ainda com tormentos eternos; cuida pois já em converter-te para Deus, para o que recorre a Maria Santíssima, dizendo: Ó minha Mãe, ajudai-me, Senhora; eu não sabia que coisa era o inferno; estava cego de todo; vivia nas maiores misérias; porém agora estou desenganado, estou resolvido e quero salvar-me, minha Mãe: antes quero morrer, antes cair no inferno, que tornar a ofender o meu Deus. Ajudai-me, pois, Senhora, e não permitais que eu chegue a odiar-vos e a maldizer-vos para sempre no inferno; salvai-me, esperança minha, salvai-me do inferno; e antes disso livrai-me de todo o pecado, que só ele me pode condenar ao inferno; de vós eu espero as graças que me são necessárias para fazer uma boa confissão, emendar toda a culpa, e dar-me todo a Deus (COUTO, 1859, p. 84).











[1] Note-se que esta referência doutrinária também foi objeto de alteração no texto atual da oração do Credo católico, que dentre outras modificações, substituiu “inferno” por “mansão dos mortos”. Como já o dissemos, não cumpre a esta pesquisa adentrar as implicações doutrinárias relacionadas a tais mudanças.
[2] Mais do que recontar a morte de Cristo na sexta-feira da Paixão, ou celebrar sua ressurreição no domingo, aos benditos fortes parece interessar mais narrar os martírios da quinta-feira santa: computar cada chicotada, medir o sangue vertido, contar os espinhos da coroa, numerar as gotas de lágrimas da Mãe Dolorosa, somar as quedas e as cuspidas sofridas por Jesus Cristo. Como não conseguimos informações precisas sobre a elaboração e escolha das ilustrações das capas, evitamos desenvolver uma análise sobre seu conteúdo iconográfico.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Primeiro inventário: literatura e cinema

As primeiras informações de que se dispõe sobre esse repertório musical resumem-se a rápidas inserções constantes na literatura que abordou o catolicismo popular do Nordeste na primeira metade do século XX. Insuficientes para fornecer detalhes que permitam uma reflexão aprofundada sobre aspectos musicológicos, mas relevantes para atestarem a utilização da música como importante instrumento devocional, essas fontes literárias constituem a única via para se ter acesso aos usos, ao caráter e a alguns textos dos primeiros cânticos populares vinculados ao catolicismo que se estabeleceu no sertão do Nordeste.
Um dos primeiros temas da religiosidade popular nordestina, que inspirou significativa produção literária, foi certamente a questão envolvendo o povoado de Belo Monte no Estado da Bahia, a guerra de Canudos. Nos escritos relativos à curta existência desse arraial, começando em 1893 com a chegada do beato Antônio Vicente Mendes Maciel – Antônio Conselheiro, e terminando com a sua completa destruição quatro anos depois, encontram-se várias ocorrências que sugerem o cultivo do canto religioso na devoção ali praticada. A despeito das severas revisões críticas a que foram submetidas as ideias de Euclides da Cunha em relação à postura religiosa e política de Antônio Conselheiro alvitradas em Os Sertões, a sensibilidade do autor em relação à importância do repertório musical rendeu algumas informações importantes sobre o uso de cânticos nas atividades religiosas lideradas pelo beato[1].
As rezas em geral prolongavam-se. Percorridas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava a cerimônia final do culto, remate obrigatório daquelas. Era o Beija das imagens (CUNHA , 1991, p. 136).
Em um estudo etnomusicológico sobre a música de Canudos, Eurides Santos (1998) ressalta que as menções ao canto religioso em Os Sertões permitem supor a intenção de o escritor suscitar no texto um paralelo entre o uso da música religiosa e as tensões vivenciadas pela comunidade de Canudos, como se recorresse a “fases” do canto para traçar um gráfico da trajetória do movimento. Valendo-se de relatos de sobreviventes e de escritos de jornalistas da época que visitaram o local, a autora realiza um inventário que denota a expressiva utilização de cânticos religiosos, dois dos quais bastante caros à religiosidade popular de Juazeiro do Norte: o Ofício da Imaculada Conceição e a Ladainha de Nossa Senhora. Transcrevemos abaixo um depoimento do jornalista Manuel Benício, testemunha ocular da guerra de Canudos, sobre a frequência do canto de benditos nesse arraial:
À noite naqueles sertões despovoados e solitários, quantas vezes, as vozes dos devotos não se ergueram, cantando benditos e entoando orações à Mãe de Jesus? (1899 apud, SANTOS, 1998, p. 39).[2]
As primeiras referências sobre a presença de cânticos religiosos populares em Juazeiro do Norte advêm de esporádicas menções na literatura do começo do século XX que abordou a conjuntura do “milagre de Juazeiro” e as questões religiosas envolvendo o apostolado do Padre Cícero Romão Batista. Seguindo a voga positivista da época, que compreende os fenômenos religiosos populares como desvios, distorções, aberrações de um modelo genuíno de religião, as esparsas referências à música religiosa carregam geralmente o mesmo ímpeto etnocêntrico. Enfatizando apenas a dimensão exótica dos cânticos, os autores recorriam a pejorativos sonoros para render-lhes alcunhas que ressaltassem um caráter supostamente bizarro, sendo comum associá-los a gemidos, uivos e murmúrios, frutos da expressão lúgubre de uma crença alienada e supersticiosa de romeiros, beatos e penitentes, como ilustra o depoimento de Lourenço Filho:
Da sombra da mata, chega-nos, de espaço, um marulhar de vozes indistintas, ou a plangência de um canto lúgubre, que o vento entrecorta em dolorosos soluços. É um grupo de romeiros em oração (Sd. , p. 27)[3].
As menções literárias mais frequentes restringem-se a ressaltar o caráter lamentoso dos cânticos, geralmente associados às cerimônias de autoflagelação praticadas por ordens de penitentes. Na ausência de gravações sonoras e mesmo de transcrições musicais consignadas nos textos, os indícios da sonoridade desses cânticos limitam-se a expressões subjetivas mobilizadas para ressaltar uma expressão lúgubre. A Ladeira do Horto, principal fonte etnográfica para nossa pesquisa, é mencionada no clássico Mistérios de Joazeiro (DINIZ, 2011), quando o autor recorre ao testemunho do padre Cícero Torres para ressaltar a existência de ordens de penitentes em Juazeiro do Norte, as quais se ouviam cantar nas madrugadas já no princípio da formação da cidade.
Os penitentes, durante o começo da cidade do Juazeiro, cantavam o rosário das almas do purgatório, à meia-noite no cemitério (hoje fechado e à Rua Nova ou Avenida Dr. Floro). Depois tal grupo tornou-se tão numeroso, que, algumas noites, iam mais de 600 deles, cantar e se disciplinar [flagelar] aos pés das cruzes e de cruzeiros localizados nas encostas da Serra do Horto (2011, p. 147)[4].
Além das cerimônias de autoflagelação, as menções literárias relativas a antigos velórios realizados em Juazeiro do Norte constituem outra fonte relevante sobre o cultivo do canto religioso nos ofícios devocionais do sertão nordestino. Transcrevemos um depoimento que Otacílio Anselmo prestou ao pesquisador Abelardo Montenegro no período da presença de seu destacamento militar em Juazeiro do Norte, após a revolução de 1930. Nesse relato, ele narra uma ocasião em que presenciou um desses velórios, durante o qual dezenas de romeiros cantavam o morto madrugada adentro.
Após a revolução de 30, fiquei com um destacamento do 23 BC em Juazeiro. Várias noites fui despertado com o canto melancólico dos benditos fúnebres, vindo dos chamados ariscos (arrebaldes). Certa noite, reuni alguns soldados, me dirigi para os lados do Horto, de onde vinham os aterradores cânticos. Numa habitação miserável, quase uma centena de romeiros se acotovelavam em torno de um defunto, à luz de compridas velas. Antes de entrar na casinha contemplei a cena. Um velho puxava o bendito. Era o centurião. Os demais respondiam em coro, alguns em convulsivo pranto. Por vezes, pedi que cantassem em voz baixa, ameaçando-os mesmo de prisão. A cantilena continuou, porém, até o amanhecer (apud MONTENEGRO, 1973, p. 63).
Além da literatura de época, outra fonte da qual nos servimos para realizar um inventário sobre os primeiros usos do canto religioso popular no sertão nordestino foi constituída pelos documentários audiovisuais que retrataram a religiosidade popular do Nordeste. Porém, antes de apresentamos essa exposição cumpre-nos comentar rapidamente alguns aspectos sobre a legitimidade do uso da imagem fílmica em estudos musicais, uma vez que em nossa pesquisa o discurso audiovisual foi importante tanto como fonte etnográfica como método de registro e interpretação da performance musical.
Repetindo a trajetória dos primeiros estudos de antropologia que recorreram à utilização do registro cinematográfico, o uso da imagem fílmica em pesquisas etnomusicológicas encontrou grande resistência em consolidar legitimidade. A esse respeito, Steve Feld (1975) realiza um inventário sobre os primeiros trabalhos em etnomusicologia que recorreram ao aparato audiovisual, tomando por referência o histórico dessas publicações no periódico The Journal of Ethnomusicology. Neste estudo Feld revela, inicialmente, que embora o periódico possuísse, desde 1959, um espaço destinado a techniques and devices, as primeiras referências a filmes foram enquadradas na forma de special bibliographies of dance films em 1963, o que fornece indícios das reservas depositadas sobre o potencial da ferramenta audiovisual em pesquisas no campo da etnomusicologia. Ressalte-se, sobre esse ponto, o surgimento em 1973, do primeiro editor, William Ferris, responsável pela sessão destinada a filmes etnomusicológicos, fato que sugere uma abertura da literatura especializada para a inclusão da imagem fílmica como documentação científica sobre música.
Dois casos de aplicação do filme em estudos etnomusicológicos merecem ser comentados em função do pioneirismo e dos reais benefícios advindos do procedimento utilizado. Inicialmente, o trabalho de Gerhard Kubik sobre música africana destinado a transcrever execuções em xilofone a partir da utilização do suporte fílmico. Realizada a gravação, o filme era revisto quadro a quadro e construído um gráfico (tablatura) registrando-se os momentos em que a tecla era acionada. Posteriormente, pela análise das distâncias assinaladas no gráfico, determinava-se a unidade mínima de pulso, sendo então possível atribuir valores proporcionais às durações e, com isso, transcrever minuciosamente o ritmo da peça. A gravação das alturas (em hertz) era simultaneamente realizada em fita e depois incorporada ao sistema de durações[5].
Gilbert Rouget utilizou outro benefício da gravação fílmica: a capacidade de armazenar informação para pesquisas posteriores. Publicou dois ensaios teóricos refletindo sobre problemas relativos ao registro áudio-visual[6], revisitando o confronto imagem-realidade, mas situando a discussão em empreendimentos de caráter etnomusicológico. No filme Danses des Reines à Porto Novo Rouget utilizou um recurso de sincronização entre música e movimento para estudar detalhes de uma coreografia de dança. Para isso foi utilizada a tecnologia de se aplicar uma “câmera lenta” tanto no som quanto na imagem possibilitando visualizar, analisar e transcrever detalhes da conjunção música e movimento dentro da performance.[7]
Apesar de nossa pesquisa não utilizar o registro fílmico para escrutinar sincronias entre imagem e som, tampouco para inferir precisão ao processo de transcrição musical, um conjunto de documentários cinematográficos sobre o sertão do Nordeste, produzidos a partir da segunda metade da década de 1960, constitui preciosa fonte etnográfica sobre a performance do canto religioso e sobre o caráter sonoro das entonações dessa época. Movidos por um ímpeto criativo que abandonava a abordagem didática que marcou a produção documentária do INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo, um grupo de jovens cineastas brasileiros iniciou um projeto que visava, segundo seu produtor e idealizador, o fotógrafo húngaro Thomas Farkas, “mostrar o Brasil aos Brasileiros”[8]. Esse empreendimento, para o qual Eduardo Escorel posteriormente cunharia o título de Caravana Farkas, dedicou uma atenção especial à religiosidade nordestina, e em particular à devoção ao Padre Cícero e às romarias de Juazeiro do Norte, concretizando-se, dentre outros trabalhos, nos filmes Viva Cariri (Geraldo Sarno, 1970) e Visão de Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970)[9].
Dentre o conjunto de filmes produzidos nessa época, um documentário interessa-nos especialmente por conta dos preciosos registros sonoros que disponibiliza. Uma parceria estabelecida com o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB) aproximou esses cineastas de alguns intelectuais das ciências humanas da USP afeitos ao projeto Farkas. Desse acordo, e contando com a parceria do CERU – Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP, resultou o documentário O Povo do Velho Pedro, realizado em 1967 sob a direção de Sérgio Muniz. O diretor dispôs de uma consultoria acadêmica especializada, em particular, das orientações da socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, pesquisadora que poucos anos antes da celebração da parceria havia concluído uma importante pesquisa sobre comunidades messiânicas do Brasil, organizada no livro O Messianismo no Brasil e no Mundo.
Ainda que não tenha sido classificado como integrante da Caravana Farkas, O Povo do Velho Pedro compartilha a mesma atmosfera de reflexão sobre a produção de documentários de caráter sociológico[10]. Recorrendo constantemente a registros sonoros captados no local, o filme divide-se em duas partes: a primeira enfoca a cidade de Juazeiro do Norte no Ceará, na década de 1930; a segunda retrata a religiosidade do Município de Santa Brígida na Bahia no ano de 1967, em particular a devoção ao Beato Pedro Batista. Apresentaremos em seguida uma rápida interpretação desse documentário ressaltando, em especial, duas cenas que constituíram importantes fontes de inspiração para algumas das ideias desenvolvidas em nosso estudo.
O filme inicia com uma cartela apresentando uma passagem bíblica: “e Jacó gerou José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus”, a qual serve de abertura para uma pequena, mas bastante significativa, introdução de pouco mais de três minutos. Sobre imagens de arquivo capturadas na década de 1920, o narrador apresenta alguns dados referentes à demografia e ao desenvolvimento econômico do lugarejo Juazeiro no Norte, bem como ressalta o desprestígio de que gozava o clero na época da chegada do Padre Cícero Romão Batista em 1872, sacerdote recém ordenado, comparando esses dados modestos com os expressivos números da época do seu falecimento em 1934, na então cidade de Juazeiro do Norte.
Os comentários destinados a expressar as virtudes do Padre Cícero privilegiam o relato de episódios referentes ao seu empreendedorismo econômico e a sua habilidade enquanto gestor social. O locutor comenta a transformação do padre em santo, em função de “uma série de milagres que lhe são atribuídos”. Em seguida são fornecidas informações sobre a posição da Igreja oficial em relação aos supostos milagres e à postura do clérigo frente aos seus romeiros, sendo declaradas pelo narrador algumas das sanções eclesiais infligidas ao santo de Juazeiro. A sequência continua relatando aspectos da trajetória política do Padre Cícero, enquanto exibe imagens suas discursando para os romeiros, e finaliza com o clérigo enquadrado em primeiro plano enquanto assina alguns folhetos. Toda a sequência tem por trilha musical o canto do Ofício de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, apresentando exatamente a mesma melodia e o mesmo caráter penitencial que registramos em Juazeiro do Norte.
Outra cartela com o texto “e percorria Jesus as cidades e os povoados, pregando o evangelho e curando toda sorte de doenças e de enfermidades” indica o fim da introdução e inicia a apresentação da principal personagem do filme, o beato Pedro Batista da Silva, o “Velho Pedro”. O sentido vago da primeira cartela torna-se mais preciso, na medida em que a sugestão de genealogia nela contida suscita certa semelhança na conduta dos dois personagens principais, de um lado pela liderança e ingerência econômica frente as suas comunidades, de outro, pela conduta religiosa, ambas consideradas pelo narrador como irreverentes em relação à Igreja Católica oficial. Através da conexão entre o apostolado do Padre Cícero em Juazeiro do Norte e as realizações de Pedro Batista em Santa Brígida, juntamente com as comparações entre o primeiro e Antônio Conselheiro, o filme revela o seu eixo narrativo principal, a saber, realizar uma leitura da religiosidade popular de Juazeiro do Norte e de Santa Brígida a partir de uma linha argumentativa, visível sobretudo na enunciação do narrador, que ressalta a alienação religiosa e postula a favor da existência de certa inclinação messiânica nos devotos do sertão nordestino.
Semelhante ao que ressaltamos em relação aos primeiros textos literários, que a despeito de sua orientação etnocêntrica e evolucionista, constituem uma importante fonte histórica em relação ao uso do canto religioso na primeira metade do século passado, a produção cinematográfica, mesmo sem grandes compromissos com a documentação do repertório musical, disponibilizou um rico material sonoro sobre as músicas religiosas da época. O Povo do Velho Pedro constitui-se numa fonte audiovisual preciosa para estudos referentes à música religiosa cantada e tocada no sertão nordestino na década de 1960. Música de reisado, bandas de pife, cantigas de cego, cantos e performances dos guerreiros de São Jorge e dos guerreiros de São Gonçalo, o canto e a dança dos Praiás realizados pelos índios Pankararus – PE, além de uma trilha musical composta de benditos coletados na região de Juazeiro do Norte e de Santa Brígida compõem a expressiva banda sonora do filme de Sérgio Muniz. Comentaremos rapidamente as duas cenas a que nos referimos no início, as quais suscitaram algumas das primeiras intuições que incitaram à realização desta pesquisa. A primeira sequência diz respeito a uma grande procissão.




A elaboração da banda sonora desta cena valoriza a sobreposição do canto de dois benditos. Este fenômeno sonoro é comum nas procissões de grande magnitude, as quais se dividem em setores, muitas vezes embalados por músicas diferentes, condição que engendra, nas zonas liminares, uma sonoridade indefinida, em que a articulação das palavras se dilui em um rumor de grande intensidade dramática. O som intra-diegético dos benditos sugere uma distância da fonte emissora, sendo sobreposto a ruídos da paisagem sonora local, o que permite ao expectador aproximar-se da materialidade da experiência devocional contemplada. O canto dos benditos, em particular do Ofício de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, confere à procissão uma impressão de cortejo fúnebre. O canto é executado em tom de lamentação, facilmente relacionado a um pranto coletivo, com sucessivos portamentos entre as notas e num andamento extremamente lento; qualidade sonora que é reproduzida na fisionomia contrita dos que acompanham o préstito.
A segunda cena deste documentário, a qual se constituiu importante fonte de inspiração e de informação para nossa pesquisa, retrata o canto do Parabéns Pra Você durante a celebração do aniversário do beato Pedro Batista. O cântico obedece ao texto utilizado na tradução para o português, entretanto, em vez das palmas comumente usadas para conferir um caráter festivo à melodia, o que se ouve é uma sonoridade plangente que lembra os benditos piedosos cantados nos exercícios devocionais. O canto é entoado apenas por mulheres, cujas expressões fisionômicas corroboram a feição penitencial da melodia. A montagem cinematográfica constrói uma associação entre o aniversário do Beato e uma procissão em honra de São Pedro, cujas imagens sucedem às da comemoração, contudo mantendo-se o mesmo cântico.




Inspirador para a nossa pesquisa, este registro audiovisual suscita a necessidade de contemplarmos em nossa investigação a existência de uma forma penitencial de cantar. Existe um “jeito” de cantar que entristece qualquer música; é essa a impressão que nos dá quando, raríssimas vezes, surpreendemos um rezador cantando uma “música do mundo”. Quando convidados a cantarem uma música que não seja bendito, é comum retrucarem com negativas sumárias, semelhantes a que ouvimos de alguns moradores da Ladeira do Horto: “como não andamos no mundo, não devemos cantar”. Neste sentido, o canto do Parabéns Pra Você constitui um documento raro sobre essa “estética penitencial”, cujas propriedades acústicas servem de prelúdio para nosso estudo sobre os benditos fortes, escopo de nossa etnografia musical. Apresentamos inicialmente um sonograma referente a um trecho da melodia, gráfico que ajuda a visualizar e comparar o canto comum do Parabéns Pra Você com a versão que foi executada no documentário, e por conseguinte, justificar a nossa proposta de privilegiar em nossa análise a forma de cantar esse repertório musical.




Pelo exame do gráfico é possível comparar alguns atributos da forma comum de se cantar o Parabéns Pra Você com aqueles presentes na forma penitencial cantada no filme. Abaixo do texto, vê-se a transcrição rítmica de um trecho da melodia convencional em notação musical e, acima, uma plotagem referente à onda sonora correspondente ao que foi entoado no filme. Os eixos horizontal e vertical correspondem, respectivamente, ao tempo de duração das sílabas e à intensidade sonora (amplitude da onda). Observe-se, em comparação com a notação musical, como algumas sílabas são “esticadas” (rilides) e outras “comprimidas” (daci). Como mostra a amplitude da onda, as esticadas têm intensidade sonora reduzida, chegando quase ao silêncio, fato que somado ao timbre nasalado, e a uma abundância de portamentos, inflige à sonoridade um caráter lamentoso, qualidade que, na cena, alcança as sensibilidades do corpo dos participantes da “festa” e produz uma performance compatível com uma cerimônia religiosa.


[1] Sobre uma possível estada de Antônio Conselheiro em Juazeiro do Norte, Manuel Diniz declara que “nunca nos lembramos de conversar com o Patriarca [Padre Cícero], mas temos razões para afirmar que ele jamais esteve aqui, pois, antes de 1875, ele já era beato nos sertões baianos” (DINIZ, 1935, P. 211).
[2] BENÍCIO, Manuel. O Rei dos Jagunços. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1899.
[3] Consultamos a 2ª edição dessa obra, na qual não consta menção à data de publicação. A primeira edição data de 1926.
[4] O exemplar consultado refere-se à segunda edição (2011) publicada na Coleção Centenário, cópia integral da edição original de 1935.
[5] Ainda que a validade da transcrição seja indiscutível no que concerne à fidelidade rítmica da execução, o nível de precisão do sistema, operando na razão de 24 fotogramas por segundo, trazia o inconveniente de registrar variações inacessíveis à percepção humana.
[6] Os ensaios realizam uma discussão a partir de seus filmes Batteries Dogon (1965) e Danses des Reines à Porto Novo (1971).
[7] A tecnologia empregada já possibilitava alterar o andamento da amostra de áudio preservando sua altura original.
[8] Thomas Farkas considera como ponto de inflexão na realização de documentários do Brasil as produções Arraial do Cabo (Paulo César Sarraceni, 1959) e Aruanda (Linduarte Noronha, 1960). O primeiro teve por temática o cotidiano de uma vila de pescadores e o segundo retratou a Festa do Rosário em Serra Talhada na Paraíba, ambos apresentando uma nova forma de olhar a cultura brasileira. Mais do que apresentar inovações estéticas, como a representação de uma luminosidade saturada compatível com a realidade sertaneja, essa nova perspectiva encerrava o propósito de construir um olhar etnográfico capaz de representar o homem brasileiro a partir de sua fala, hábitos e singularidades expressivas. Maurice Capovilla, por exemplo, referindo-se a Aruanda, localiza neste trabalho uma busca pela estrutura mental do homem do sertão, pensamento que corrobora o estatuto etnográfico almejado.
[9] Sobre a cinematografia relativa à religiosidade popular brasileira, cumpre mencionar o projeto que Patrícia Monte-Mór, em parceria com a ONG ISER – Instituto de Estudos da Religião, desenvolveu em 1984, reunindo 62 produções cinematográficas sobre esse tema. Por intermédio desse inventário, nota-se a preferência dos cineastas por temas relacionados a crenças consideradas exóticas e a eventos extraordinários, tendência que se efetiva inicialmente nos filmes Santa de Coqueiros, de Ramon Garcia (1930) e As Curas do Prof. Mozar (1930), dirigido por Alberto Botelho, ambos motivados por fatos excepcionais ocorridos nas locações, preferência temática que posteriormente atrairia atenção para o sertão nordestino, e, particularmente, para as peregrinações a Juazeiro Norte, motivadas pela crença popular no “milagre” e na santidade do Padre Cícero. Esse estudo resultou na amostra Religiões Populares no Brasil, realizada em várias universidades brasileiras durante o ano de 1984.
[10] A expressão alude à categoria “modelo sociológico” segundo a perspectiva utilizada por Jean-Claude Bernardet na análise dos curtas-metragens Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Subterrâneos do Futebol (Maurice Capovilla, 1965), a qual toma como foco analítico a forma como se apresenta ou se constrói a autoridade sobre a enunciação dos temas retratados pelo filme.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Breve inventário sobre o canto popular religioso no Nordeste


Os vários anos de incursão etnográfica no sertão do Cariri, e em Juazeiro do Norte em especial, renderam-nos uma amostra bastante representativa do repertório musical relacionado à religiosidade popular praticada nessa região. A impressionante variedade temática e extensão do repertório musical podem ser inferidas a partir das inúmeras gravações efetuadas, já contabilizando mais de uma centena de registros, na maioria dos casos sem quaisquer indícios relativos à autoria ou a mecanismos de transmissão de conhecimento musical. “Eu ouvia os mais velhos cantarem e pronto: tava aprendido”, “quem ensina é Nosso Senhor”, “meu pai disse que eu não podia estudar, porque eu ia aprender coisas que iam atrapalhar minha memória, assim eu fiz”; explicações como essas foram mobilizadas para relatar uma iniciação na arte de cantar benditos. Para os líderes religiosos leigos – beatas, penitentes, tiradeiras de renovação ou de sentinelas, é imprescindível possuir um profundo conhecimento do repertório musical, de cuja habilidade advém grande parte do reconhecimento que lhes são dispensados. A capacidade de memorizar e cantar grandes quantidades de benditos é sempre atribuída a uma dádiva concedida por Deus, que se apresenta desde tenra infância. O canto é parte essencial das cerimônias religiosas, não apenas como mera expressão interlocutória realizada entre orações, mas na condição mesma de reza, e de reza mais poderosa do que as faladas, sejam nas rápidas novenas, sejam nos intermináveis pernoites “cantando o morto”.
Para realizarmos este trabalho foi imprescindível recorrermos a registros sonoros que produzimos em pesquisas anteriores, bem como servirmo-nos de fontes complementares provindas da literatura, do cinema e de folhetos de cordéis, as quais possibilitassem a realização de um inventário sobre o caráter sonoro atribuído aos antigos benditos, bem como aos usos relativos ao seu canto. Apresentaremos nas próximas postagens uma interpretação desse material, conteúdo fundamental para embasar algumas de nossas conclusões, sobretudo devido às limitações decorrentes dos impedimentos de falar sobre práticas devocionais antigas.

Altares do Horto


     

          Como acontecerá com algumas postagens, este texto não trata diretamente do repertório musical. A intenção de incluí-la sobrevém da importância da Sala do Coração de Jesus para o catolicismo penitente de Juazeiro do Norte, cujos componentes principais de sua iconografia encontram-se emoldurados e organizados em pequenos altares domésticos, conteúdo que, como comentaremos posteriormente, guarda relações sutis com o repertório musical.
A receptividade dos moradores da Ladeira do Horto em relação às nossas visitas era a melhor possível, sobretudo quando anunciávamos que nosso contato devia-se a um estudo sobre a devoção ao Coração de Jesus, para o que se colocavam plenamente solícitos. Gentilmente convidados a adentrar as casas, éramos frequentemente indagados sobre a nossa pesquisa e logo em seguida passávamos a conversar sobre os altares: as principais imagens, como organizar os objetos, cuidados com a sala, promessas e milagres, tudo era comentado. Um fato recorrente nessas conversas era o orgulho com que os moradores narravam o episódio da chegada da imagem do Coração de Jesus na casa, uma espécie de batismo da moradia, uma dádiva digna de gratidão eterna. Dona Francisca, emocionada, lembrou a chegada da imagem, cuja história se confundia com a de seu pai, falecido há bem pouco tempo.
Quando meu pai fez essa casa, ele comprou essa imagem do Coração de Jesus e levou pro meu padrim [Padre Cícero] benzer. Depois que a sala estava preparada ele chamou uma beata que ele conhecia pra fazer a entronização. Depois veio morar aqui com a minha mãe. Ele tá ali no retrato [aponta para um retrato pintado dependurado na parede].[1] Ele morreu nessa sala, de frente pro seu Coração de Jesus.
Além da bênção comum que autoriza a veneração de imagens e objetos religiosos, o quadro do Coração de Jesus que irá presidir o altar doméstico deve ser submetido a um rito de entronização. Assim, depois de comprada, a imagem é levada a um padre ou, mais frequentemente, depositada por alguns instantes sobre o túmulo do Padre Cícero, para tornar-se benta; posteriormente, os donos da casa convidam uma beata ou uma rezadeira para que coordene a cerimônia de entronização. Este procedimento é realizado no interior do espaço onde será fixada a imagem e visa constituir entre a família e a imagem do Sagrado Coração de Jesus[2] um vínculo devocional vitalício, cujos efeitos sacramentais são infligidos também ao cômodo que acolheu o quadro, a partir de então chamado “Sala do Coração de Jesus”. Dona Marina explicou em detalhes estes dois procedimentos:
A gente compra o quadro do Coração de Jesus e leva para benzer. Porque antes era só um pedaço de pau ou de gesso, depois da bênção ele fica diferente, já obra milagre. Quando eu levo imagem pra benzer, eu prefiro colocar a imagem nos pés do meu padrinho, lá eu sei que fica benzida![3] Os padres de hoje não dizem mais as palavras, nem batina eles usam. Depois, a gente escolhe uma data pra entronizar, aí chama uma tiradeira de renovação para fazer a entronização. Aí nos outros anos, no mesmo dia, tem de fazer uma renovação, não pode esquecer, é pro resto da vida.
Uma vez realizada a entronização da imagem do Coração de Jesus, nos anos subsequentes realizar-se-á, no mesmo dia, a cerimônia de renovação da entronização, ou simplesmente, Renovação, como é chamada em Juazeiro do Norte. É comum se realizar a renovação em uma data significativa para a família, optando-se, na maioria das vezes, pelo dia do casamento dos donos da casa. Como nos advertiu Dona Tecla, no dia da cerimônia toda a sala deve estar “renovada”; as cortinas e as toalhas lavadas, as imagens dos santos e os retratos bem lustrados e, se possível, as paredes pintadas. As flores do altar também devem ser trocadas, para o que são mobilizados procedimentos especiais. Contagiadas pelo poder sagrado da imagem que adornam, quando substituídas, não podem ser descartadas simplesmente, mas devem ser queimadas, e suas cinzas recolhidas viram um bálsamo milagroso que trata males do corpo e da alma. Mestre Aldenir, mestre de reisado da cidade do Crato, residindo atualmente na Ladeira do Horto, explica o seu processo de troca de flores:
A gente retira aquelas flores com cuidado, bota num lençol branco pra não se perder nenhuma, faz uma fogueirinha e queima elas. Pega as cinzas e guarda pra curar cabeça, garganta, um monte de doenças. Tem gente que fica curado mesmo. Hoje ninguém acredita mais, mas antes era como um milagre.[4]
 
      O texto referente ao rito oficial de entronização, o mesmo utilizado nas renovações realizadas em Juazeiro do Norte, consta em folhetos similares aos usados para impressão de cordéis, produzidos na própria cidade. Apesar de ser prescrita a participação de um sacerdote católico, na Ladeira do Horto essas cerimônias são presididas por moradores leigos, designados de tiradores ou tiradeiras de renovação, os quais acrescentam ao texto fixo do rito evocações e cânticos representativos para a região. Recolhemos em pontos de venda de cordéis dois folhetos em que consta a íntegra deste rito, um editado pela gráfica Royal em Juazeiro do Norte, outro pela gráfica Cajazeiras, no estado da Paraíba. Ambos são idênticos em seu conteúdo, diferenciando-se ligeiramente na ilustração da capa, como se vê nas imagens abaixo.



[1] Nas entrevistas em que os pais do depoente eram falecidos, era comum haver na Sala do Coração de Jesus um retrato pintado dependurado na parede lateral retratando-os, ao que os moradores referiam com muito orgulho e reverência. A recorrência desse fato e as relações que estes retratos especiais estabelecem com os altares domésticos, além do prestígio que possuem em relação a fotografias comuns, fizeram deste tema objeto de análise exclusiva, que será objeto de uma postagem específica.
[2] O reconhecimento oficial da devoção ao Sagrado Coração de Jesus data do final do século XVII, depois das revelações recebidas por Santa Margarida Maria Alacoque em Paray-le-Monial, na França, entre os anos de 1673 e 1675. Apesar de este prodígio haver imprimido o impulso decisivo para legitimar oficialmente o seu culto litúrgico nos templos católicos, vários conventos da Europa medieval a praticavam em forma de culto privado. Segundo a tradição Católica, ocorreram várias revelações anteriores àquela concedida a Santa Margarida, como as que teriam recebido, ainda no século XIII, Santa Matilde e Santa Gertrudes, esta última considerada a teóloga do Sagrado Coração na Idade Média (MELO, 1998). Por intermédio da encíclica Annum Sacrum, de 25 de Maio de 1899, o Papa Leão XIII promulgou a consagração do gênero humano ao Sagrado Coração de Jesus.
[3] Apesar de ser desaconselhado pela Igreja, o procedimento de benzer objetos por meio do contato com “relíquias” do Padre Cícero recebe a preferência da maioria dos devotos.
[4] Esta forma é uma das várias que anotamos. Há quem conserve as flores em depósitos para utilização posterior, usando-as para fazer chá. Vimos também quem as mastigue diretamente, logo depois de removidas da imagem. Outras pessoas depositam as flores aos pés de uma planta do jardim. Esses procedimentos são adotados, sobretudo, pelos moradores da Ladeira do Horto, não havendo nos bairros mais centrais de Juazeiro do Norte o mesmo rigor.