Notamos que em função das circunstâncias demandadas
para o canto de determinados benditos, alguns rezadores se recusavam a
executá-los na forma cantada, sendo às vezes possível registrarmos apenas “a
fala”, ou seja, ouvi-los apenas recitados, formato que supostamente retiraria
do bendito parte de sua força e, portanto, simplificaria os rigores exigidos
para seu canto. Por esse motivo, a gravação dos benditos considerados mais
poderosos – conhecidos por “benditos fortes”, oferecia maiores dificuldades, em
alguns casos intransponíveis, como nos explicou o líder da Ordem de Penitentes Ave
de Jesus,
em relação ao bendito O Sonho de Nossa
Senhora:
Esse bendito eu só posso dizer ele sem a “solfa” [melodia], só
falando as palavras, porque se não fica muito pesado; pra cantar tem que ser
nas horas certas, porque não é brincadeira. Porque rezado é oração, cantado é
hino, é bendito. Vou dar uma explicação: é melhor cantar hino, glórias a Deus,
do que rezar um rosário na hora do meio-dia no mês de janeiro em cima das
pedras duras, de joelhos. Cantar são dois votos de coração: mental e vocal.
O fato de ser
permitida apenas a declamação do texto de determinados benditos em situações em
que não está autorizado o seu canto, além de reforçar o nosso argumento sobre a
supremacia do poder sagrado de algumas músicas em relação às orações faladas,
incitou-nos a examinar outra questão. A récita dos textos articulava notoriamente
uma prosódia que remetia àquela usada na declamação de cordéis. A inflexão e as
rimas entre frases, o ritmo da declamação, a regularidade da métrica poética
dos versos e a própria “musicalidade” da entonação constituíam elementos que
suscitavam a influência da literatura de cordel na constituição do repertório
musical, seja reproduzindo textos de benditos recolhidos da tradição oral, seja
fornecendo poesias que serviriam de base textual para composições de melodias.
No Brasil, segundo Câmara Cascudo, o uso de orações
parafraseadas em versos rimados remonta ao século XVI. Baseando as primeiras
ocorrências no registro constante no
Tratado da Terra e Gente do Brasil de autoria de Fernão Cardim (1939), o
folclorista atribui aos padres da Companhia de Jesus a introdução dessa
modalidade de prece em terras brasílicas. A despeito da provável pertinência de
sua afirmação, Cascudo (Sd.) considera as orações rimadas brasileiras como um
“resquício da tradição clássica literária”, creditando a elas um atavismo satírico
próprio aos seus supostos predecessores lusitanos, como é o caso de “Anjo
Bento” da lavra de Gregório de Matos, e conclui tratar-se de um “gênero meio-morto
do folclore sertanejo” (Sd. p. 72). Apesar de reconhecer a vastidão do
repertório de orações rimadas, a interpretação de Câmara Cascudo, tanto em
relação ao caráter satírico, como ao desaparecimento desse gênero, não encontra
respaldo empírico em nosso estudo, por intermédio do qual podemos asseverar o
uso corrente de tais orações, cantadas ou faladas, sempre com um discurso que
exibe profunda deferência religiosa.
O aprofundamento desta questão, o que demandaria uma
longa e específica investigação, foge ao objetivo de nosso estudo. Todavia,
motivados por essa provocação, passamos a adquirir folhetos de cordel antigos
na intenção de localizar referências textuais que constituíssem indícios de um
processo de transmissão de conhecimento “musical”. Interessava-nos também
investigar no texto e no conteúdo iconográfico das capas dos folhetos antigos
aquilo que, por hipótese, postulávamos em relação à performance musical e à sonoridade mesma dos benditos, ou seja, o predomínio
de referências ao sofrimento, ao pecado e ao inferno, conteúdo extremamente
reduzido no contexto católico atual. Apesar de essa investida ter surtido
rendimento apenas modesto, seja pela dificuldade de localizar folhetos antigos
com textos de benditos, seja pelo fato de não trazerem menção à data de
impressão, ela possibilitou compararmos reedições atuais de antigos cordéis com
versões cuja tipologia dos caracteres indicava tratar-se de impressão mais
antiga. Cotejando-as, percebemos que algumas reimpressões recentes removeram
das capas e mesmo de passagens do texto menções textuais diretamente
relacionadas ao inferno. Chamaram atenção em especial as duas versões que
recolhemos do Bendito da Quinta-Feira [A39],
sobretudo em relação à forma com que a versão moderna finaliza a narração da
Paixão, sobretudo na estrofe que relata a morte de Jesus.
Denunciando
filiar-se a orientações doutrinárias mais recentes, o folheto atual narra que
depois da morte de Jesus “Sua alma subiu, foi pedir ao Eterno...”,
enquanto que a versão antiga, sob o título de Bendito de Jesus no Horto, narra que “Sua alma desceu, foi ao
inferno”. Com implicações doutrinárias óbvias, a versão antiga preserva um
conhecimento tradicional católico sob a visita de Jesus Cristo aos infernos
depois de sua morte, na intenção de libertar as almas aprisionadas no limbo. Na
nova versão, para conseguir essa libertação, em vez de descer ao inferno, sua
alma sobe até o céu para pedir pelas almas do limbo[1].
Transcrevemos abaixo as duas estrofes que comentamos, conforme redação dos
folhetos, em seguida, anexamos fotografias referente às capas e às páginas que
contêm as estrofes[2].
Quase sempre guardados como se fora uma relíquia
sagrada, os folhetos e livros antigos raramente nos eram apresentados, mesmo
nas ocasiões de nossas primeiras visitas no ano de 2000, sob o argumento de
estarem muitos velhos ou de “pertencerem” a um parente falecido. Constatamos, entretanto,
a existência de folhetos antigos referentes ao ritual de entronização do
Sagrado Coração de Jesus, à novena de Nossa Senhora das Dores, à Novena do Mês
das Almas, além de alguns breviários. Verificamos a presença de raros
exemplares das Horas Marianas e da Missão Abreviada, este último,
considerado pelos devotos da religiosidade penitente de Juazeiro o mais
precioso de todos os textos religiosos, encontrando-se muitas vezes escondidos
pelos seus proprietários. Encerramos este tópico apresentando a transcrição de
um trecho da Missão Abreviada, cujo
teor, que prevalece em todo livro, ratifica o valor da penitência enquanto
dispositivo religioso imprescindível à salvação da alma. Esta orientação é
perfeitamente afinada com os preceitos da religiosidade penitente de Juazeiro
do Norte, para cujos devotos esse livro guarda o grande tesouro da vida
espiritual. Na sequência, apresentamos fotografias de alguns folhetos e livros
antigos que encontramos nas casas que visitamos.
Por isso, se te queres salvar, pecador, cuida já em reformar a
tua vida, e fazer uma verdadeira penitência; vai-te entregando aos jejuns, às
disciplinas, aos cilícios e às mortificações; não digas que te doem, porque
mais há de doer o fogo do inferno por toda eternidade; não digas que te custa,
porque mais há de custar um só momento no meio desse fogo devorador; não digas
também que és fraco, que não podes, porque tu bem valente tens sido para ofender
a Deus; paga, pois, porque deves; paga agora com pouco o que depois não podes
pagar ainda com tormentos eternos; cuida pois já em converter-te para Deus,
para o que recorre a Maria Santíssima, dizendo: Ó minha Mãe, ajudai-me,
Senhora; eu não sabia que coisa era o inferno; estava cego de todo; vivia nas
maiores misérias; porém agora estou desenganado, estou resolvido e quero
salvar-me, minha Mãe: antes quero morrer, antes cair no inferno, que tornar a
ofender o meu Deus. Ajudai-me, pois, Senhora, e não permitais que eu chegue a
odiar-vos e a maldizer-vos para sempre no inferno; salvai-me, esperança minha,
salvai-me do inferno; e antes disso livrai-me de todo o pecado, que só ele me
pode condenar ao inferno; de vós eu espero as graças que me são necessárias para
fazer uma boa confissão, emendar toda a culpa, e dar-me todo a Deus (COUTO,
1859, p. 84).
[1]
Note-se que esta referência doutrinária também foi objeto de alteração no texto
atual da oração do Credo católico,
que dentre outras modificações, substituiu “inferno” por “mansão dos mortos”.
Como já o dissemos, não cumpre a esta pesquisa adentrar as implicações
doutrinárias relacionadas a tais mudanças.
[2]
Mais do que recontar a morte de Cristo na sexta-feira da Paixão, ou celebrar
sua ressurreição no domingo, aos benditos
fortes parece interessar mais narrar os martírios da quinta-feira santa: computar
cada chicotada, medir o sangue vertido, contar os espinhos da coroa, numerar as
gotas de lágrimas da Mãe Dolorosa, somar as quedas e as cuspidas sofridas por
Jesus Cristo. Como não conseguimos informações precisas sobre a elaboração e
escolha das ilustrações das capas, evitamos desenvolver uma análise sobre seu
conteúdo iconográfico.
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