As primeiras informações de que se dispõe sobre
esse repertório musical resumem-se a rápidas inserções constantes na literatura
que abordou o catolicismo popular do Nordeste na primeira metade do século XX.
Insuficientes para fornecer detalhes que permitam uma reflexão aprofundada
sobre aspectos musicológicos, mas relevantes para atestarem a utilização da
música como importante instrumento devocional, essas fontes literárias
constituem a única via para se ter acesso aos usos, ao caráter e a alguns
textos dos primeiros cânticos populares vinculados ao catolicismo que se
estabeleceu no sertão do Nordeste.
Um dos
primeiros temas da religiosidade popular nordestina, que inspirou significativa
produção literária, foi certamente a questão envolvendo o povoado de Belo Monte
no Estado da Bahia, a guerra de Canudos. Nos escritos relativos à curta
existência desse arraial, começando em 1893 com a chegada do beato Antônio
Vicente Mendes Maciel – Antônio Conselheiro, e terminando com a sua completa
destruição quatro anos depois, encontram-se várias ocorrências que sugerem o
cultivo do canto religioso na devoção ali praticada. A despeito das severas
revisões críticas a que foram submetidas as ideias de Euclides da Cunha em
relação à postura religiosa e política de Antônio Conselheiro alvitradas em Os
Sertões, a sensibilidade do autor em relação à importância do repertório
musical rendeu algumas informações importantes sobre o uso de cânticos nas
atividades religiosas lideradas pelo beato.
As
rezas em geral prolongavam-se. Percorridas as escalas das ladainhas, todas as
contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava a cerimônia final do
culto, remate obrigatório daquelas. Era o Beija das imagens (CUNHA , 1991, p.
136).
Em um estudo etnomusicológico sobre a música de
Canudos, Eurides Santos (1998) ressalta que as menções ao canto religioso em Os
Sertões permitem supor a intenção de o escritor suscitar no texto um
paralelo entre o uso da música religiosa e as tensões vivenciadas pela
comunidade de Canudos, como se recorresse a “fases” do canto para traçar um
gráfico da trajetória do movimento. Valendo-se de relatos de sobreviventes e de
escritos de jornalistas da época que visitaram o local, a autora realiza um inventário
que denota a expressiva utilização de cânticos religiosos, dois dos quais
bastante caros à religiosidade popular de Juazeiro do Norte: o Ofício
da Imaculada Conceição e a Ladainha de Nossa Senhora. Transcrevemos abaixo um depoimento do jornalista
Manuel Benício, testemunha ocular da guerra de Canudos, sobre a frequência do
canto de benditos nesse arraial:
À
noite naqueles sertões despovoados e solitários, quantas vezes, as vozes dos
devotos não se ergueram, cantando benditos e entoando orações à Mãe de Jesus?
(1899 apud, SANTOS, 1998, p. 39).
As
primeiras referências sobre a presença de cânticos religiosos populares em
Juazeiro do Norte advêm de esporádicas menções na literatura do começo do
século XX que abordou a conjuntura do “milagre de Juazeiro” e as questões
religiosas envolvendo o apostolado do Padre Cícero Romão Batista. Seguindo a
voga positivista da época, que compreende os fenômenos religiosos populares
como desvios, distorções, aberrações de um modelo genuíno de religião, as
esparsas referências à música religiosa carregam geralmente o mesmo ímpeto
etnocêntrico. Enfatizando apenas a dimensão exótica dos cânticos, os autores
recorriam a pejorativos sonoros para render-lhes alcunhas que ressaltassem um
caráter supostamente bizarro, sendo comum associá-los a gemidos, uivos e
murmúrios, frutos da expressão lúgubre de uma crença alienada e supersticiosa
de romeiros, beatos e penitentes, como ilustra o depoimento de Lourenço Filho:
Da
sombra da mata, chega-nos, de espaço, um marulhar de vozes indistintas, ou a
plangência de um canto lúgubre, que o vento entrecorta em dolorosos soluços. É
um grupo de romeiros em oração (Sd. , p. 27).
As
menções literárias mais frequentes restringem-se a ressaltar o caráter
lamentoso dos cânticos, geralmente associados às cerimônias de autoflagelação
praticadas por ordens de penitentes. Na ausência de gravações sonoras e mesmo
de transcrições musicais consignadas nos textos, os indícios da sonoridade
desses cânticos limitam-se a expressões subjetivas mobilizadas para ressaltar
uma expressão lúgubre. A Ladeira do Horto, principal fonte etnográfica para
nossa pesquisa, é mencionada no clássico Mistérios de Joazeiro (DINIZ,
2011), quando o autor recorre ao testemunho do padre Cícero Torres para
ressaltar a existência de ordens de penitentes em Juazeiro do Norte, as quais
se ouviam cantar nas madrugadas já no princípio da formação da cidade.
Os
penitentes, durante o começo da cidade do Juazeiro, cantavam o rosário das
almas do purgatório, à meia-noite no cemitério (hoje fechado e à Rua Nova ou
Avenida Dr. Floro). Depois tal grupo tornou-se tão numeroso, que, algumas
noites, iam mais de 600 deles, cantar e se disciplinar [flagelar] aos pés das
cruzes e de cruzeiros localizados nas encostas da Serra do Horto (2011, p. 147).
Além das
cerimônias de autoflagelação, as menções literárias relativas a antigos
velórios realizados em Juazeiro do Norte constituem outra fonte relevante sobre
o cultivo do canto religioso nos ofícios devocionais do sertão nordestino.
Transcrevemos um depoimento que Otacílio Anselmo prestou ao pesquisador
Abelardo Montenegro no período da presença de seu destacamento militar em
Juazeiro do Norte, após a revolução de 1930. Nesse relato, ele narra uma
ocasião em que presenciou um desses velórios, durante o qual dezenas de
romeiros cantavam o morto madrugada adentro.
Após a
revolução de 30, fiquei com um destacamento do 23 BC em Juazeiro. Várias noites
fui despertado com o canto melancólico dos benditos fúnebres, vindo dos chamados
ariscos (arrebaldes). Certa noite, reuni alguns soldados, me dirigi para os
lados do Horto, de onde vinham os aterradores cânticos. Numa habitação
miserável, quase uma centena de romeiros se acotovelavam em torno de um
defunto, à luz de compridas velas. Antes de entrar na casinha contemplei a
cena. Um velho puxava o bendito. Era o centurião. Os demais respondiam em coro,
alguns em convulsivo pranto. Por vezes, pedi que cantassem em voz baixa,
ameaçando-os mesmo de prisão. A cantilena continuou, porém, até o amanhecer
(apud MONTENEGRO, 1973, p. 63).
Além da literatura de época, outra fonte da qual
nos servimos para realizar um inventário sobre os primeiros usos do canto
religioso popular no sertão nordestino foi constituída pelos documentários
audiovisuais que retrataram a religiosidade popular do Nordeste. Porém, antes
de apresentamos essa exposição cumpre-nos comentar rapidamente alguns aspectos
sobre a legitimidade do uso da imagem fílmica em estudos musicais, uma vez que
em nossa pesquisa o discurso audiovisual foi importante tanto como fonte
etnográfica como método de registro e interpretação da performance musical.
Repetindo a trajetória
dos primeiros estudos de antropologia que recorreram à utilização do registro
cinematográfico, o uso da imagem fílmica em pesquisas etnomusicológicas
encontrou grande resistência em consolidar legitimidade. A esse respeito, Steve
Feld (1975) realiza um inventário sobre os primeiros trabalhos em
etnomusicologia que recorreram ao aparato audiovisual, tomando por referência o
histórico dessas publicações no periódico The Journal of
Ethnomusicology. Neste estudo Feld revela, inicialmente, que embora o
periódico possuísse, desde 1959, um espaço destinado a techniques and
devices, as primeiras referências a filmes foram enquadradas na forma de special
bibliographies of dance films em 1963, o que fornece indícios das
reservas depositadas sobre o potencial da ferramenta audiovisual em pesquisas
no campo da etnomusicologia. Ressalte-se, sobre esse ponto, o surgimento em
1973, do primeiro editor, William Ferris, responsável pela sessão destinada a
filmes etnomusicológicos, fato que sugere uma abertura da literatura
especializada para a inclusão da imagem fílmica como documentação científica
sobre música.
Dois casos de aplicação
do filme em estudos etnomusicológicos merecem ser comentados em função do
pioneirismo e dos reais benefícios advindos do procedimento utilizado.
Inicialmente, o trabalho de Gerhard Kubik sobre música africana destinado a
transcrever execuções em xilofone a partir da utilização do suporte fílmico.
Realizada a gravação, o filme era revisto quadro a quadro e construído um
gráfico (tablatura) registrando-se os momentos em que a tecla era acionada.
Posteriormente, pela análise das distâncias assinaladas no gráfico,
determinava-se a unidade mínima de pulso, sendo então possível atribuir valores
proporcionais às durações e, com isso, transcrever minuciosamente o ritmo da
peça. A gravação das alturas (em hertz) era simultaneamente realizada em fita e
depois incorporada ao sistema de durações.
Gilbert Rouget utilizou
outro benefício da gravação fílmica: a capacidade de armazenar informação para
pesquisas posteriores. Publicou dois ensaios teóricos refletindo sobre
problemas relativos ao registro áudio-visual,
revisitando o confronto imagem-realidade, mas situando a discussão em
empreendimentos de caráter etnomusicológico. No filme Danses des Reines
à Porto Novo Rouget utilizou um recurso de sincronização entre música
e movimento para estudar detalhes de uma coreografia de dança. Para isso foi
utilizada a tecnologia de se aplicar uma “câmera lenta” tanto no som quanto na
imagem possibilitando visualizar, analisar e transcrever detalhes da conjunção
música e movimento dentro da performance.
Apesar de nossa pesquisa não utilizar o registro
fílmico para escrutinar sincronias entre imagem e som, tampouco para inferir
precisão ao processo de transcrição musical, um conjunto de documentários
cinematográficos sobre o sertão do Nordeste, produzidos a partir da segunda
metade da década de 1960, constitui preciosa fonte etnográfica sobre a performance do
canto religioso e sobre o caráter sonoro das entonações dessa época. Movidos
por um ímpeto criativo que abandonava a abordagem didática que marcou a
produção documentária do INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo, um
grupo de jovens cineastas brasileiros iniciou um projeto que visava, segundo
seu produtor e idealizador, o fotógrafo húngaro Thomas Farkas, “mostrar o
Brasil aos Brasileiros”.
Esse empreendimento, para o qual Eduardo Escorel posteriormente cunharia o
título de Caravana Farkas, dedicou uma atenção especial à
religiosidade nordestina, e em particular à devoção ao Padre Cícero e às
romarias de Juazeiro do Norte, concretizando-se, dentre outros trabalhos, nos
filmes Viva Cariri (Geraldo Sarno, 1970) e Visão de
Juazeiro (Eduardo Escorel, 1970).
Dentre o conjunto de filmes produzidos nessa época,
um documentário interessa-nos especialmente por conta dos preciosos registros
sonoros que disponibiliza. Uma parceria estabelecida com o Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB) aproximou esses cineastas de
alguns intelectuais das ciências humanas da USP afeitos ao projeto Farkas.
Desse acordo, e contando com a parceria do CERU – Centro de Estudos Rurais e
Urbanos da USP, resultou o documentário O Povo do Velho Pedro,
realizado em 1967 sob a direção de Sérgio Muniz. O diretor dispôs de uma
consultoria acadêmica especializada, em particular, das orientações da
socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, pesquisadora que poucos anos antes
da celebração da parceria havia concluído uma importante pesquisa sobre
comunidades messiânicas do Brasil, organizada no livro O Messianismo no
Brasil e no Mundo.
Ainda que não tenha sido classificado como
integrante da Caravana Farkas, O Povo do Velho Pedro compartilha
a mesma atmosfera de reflexão sobre a produção de documentários de caráter
sociológico.
Recorrendo constantemente a registros sonoros captados no local, o filme
divide-se em duas partes: a primeira enfoca a cidade de Juazeiro do Norte no
Ceará, na década de 1930; a segunda retrata a religiosidade do Município de
Santa Brígida na Bahia no ano de 1967, em particular a devoção ao Beato Pedro
Batista. Apresentaremos em seguida uma rápida interpretação desse documentário
ressaltando, em especial, duas cenas que constituíram importantes fontes de
inspiração para algumas das ideias desenvolvidas em nosso estudo.
O filme inicia com uma cartela apresentando uma
passagem bíblica: “e Jacó gerou José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus”, a
qual serve de abertura para uma pequena, mas bastante significativa, introdução
de pouco mais de três minutos. Sobre imagens de arquivo capturadas na década de
1920, o narrador apresenta alguns dados referentes à demografia e ao
desenvolvimento econômico do lugarejo Juazeiro no Norte, bem como ressalta o
desprestígio de que gozava o clero na época da chegada do Padre Cícero Romão
Batista em 1872, sacerdote recém ordenado, comparando esses dados modestos com
os expressivos números da época do seu falecimento em 1934, na então cidade de
Juazeiro do Norte.
Os comentários destinados a expressar as virtudes
do Padre Cícero privilegiam o relato de episódios referentes ao seu
empreendedorismo econômico e a sua habilidade enquanto gestor social. O locutor
comenta a transformação do padre em santo, em função de “uma série de milagres
que lhe são atribuídos”. Em seguida são fornecidas informações sobre a posição
da Igreja oficial em relação aos supostos milagres e à postura do clérigo
frente aos seus romeiros, sendo declaradas pelo narrador algumas das sanções
eclesiais infligidas ao santo de Juazeiro. A sequência continua relatando
aspectos da trajetória política do Padre Cícero, enquanto exibe imagens suas
discursando para os romeiros, e finaliza com o clérigo enquadrado em primeiro
plano enquanto assina alguns folhetos. Toda a sequência tem por trilha musical
o canto do Ofício de Nossa Senhora da Imaculada Conceição,
apresentando exatamente a mesma melodia e o mesmo caráter penitencial que
registramos em Juazeiro do Norte.
Outra cartela com o texto “e percorria Jesus as
cidades e os povoados, pregando o evangelho e curando toda sorte de doenças e
de enfermidades” indica o fim da introdução e inicia a apresentação da
principal personagem do filme, o beato Pedro Batista da Silva, o “Velho Pedro”.
O sentido vago da primeira cartela torna-se mais preciso, na medida em que a
sugestão de genealogia nela contida suscita certa semelhança na conduta dos
dois personagens principais, de um lado pela liderança e ingerência econômica
frente as suas comunidades, de outro, pela conduta religiosa, ambas
consideradas pelo narrador como irreverentes em relação à Igreja Católica
oficial. Através da conexão entre o apostolado do Padre Cícero em Juazeiro do
Norte e as realizações de Pedro Batista em Santa Brígida, juntamente com as
comparações entre o primeiro e Antônio Conselheiro, o filme revela o seu eixo
narrativo principal, a saber, realizar uma leitura da religiosidade popular de
Juazeiro do Norte e de Santa Brígida a partir de uma linha argumentativa,
visível sobretudo na enunciação do narrador, que ressalta a alienação religiosa
e postula a favor da existência de certa inclinação messiânica nos devotos do
sertão nordestino.
Semelhante ao que ressaltamos em relação aos
primeiros textos literários, que a despeito de sua orientação etnocêntrica e
evolucionista, constituem uma importante fonte histórica em relação ao uso do
canto religioso na primeira metade do século passado, a produção
cinematográfica, mesmo sem grandes compromissos com a documentação do
repertório musical, disponibilizou um rico material sonoro sobre as músicas
religiosas da época. O Povo do Velho Pedro constitui-se numa
fonte audiovisual preciosa para estudos referentes à música religiosa cantada e
tocada no sertão nordestino na década de 1960. Música de reisado, bandas de
pife, cantigas de cego, cantos e performances dos guerreiros
de São Jorge e dos guerreiros de São Gonçalo, o canto e a dança dos Praiás
realizados pelos índios Pankararus – PE, além de uma trilha musical composta de
benditos coletados na região de Juazeiro do Norte e de Santa Brígida compõem a
expressiva banda sonora do filme de Sérgio Muniz. Comentaremos rapidamente as
duas cenas a que nos referimos no início, as quais suscitaram algumas das
primeiras intuições que incitaram à realização desta pesquisa. A primeira
sequência diz respeito a uma grande procissão.
A elaboração da banda sonora desta cena valoriza a
sobreposição do canto de dois benditos. Este fenômeno sonoro é comum nas
procissões de grande magnitude, as quais se dividem em setores, muitas vezes
embalados por músicas diferentes, condição que engendra, nas zonas liminares,
uma sonoridade indefinida, em que a articulação das palavras se dilui em um
rumor de grande intensidade dramática. O som intra-diegético dos benditos
sugere uma distância da fonte emissora, sendo sobreposto a ruídos da paisagem
sonora local, o que permite ao expectador aproximar-se da materialidade da
experiência devocional contemplada. O canto dos benditos, em particular do Ofício
de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, confere à procissão uma impressão
de cortejo fúnebre. O canto é executado em tom de lamentação, facilmente
relacionado a um pranto coletivo, com sucessivos portamentos entre as notas e
num andamento extremamente lento; qualidade sonora que é reproduzida na
fisionomia contrita dos que acompanham o préstito.
A segunda cena deste documentário, a qual se
constituiu importante fonte de inspiração e de informação para nossa pesquisa,
retrata o canto do Parabéns Pra Você durante a celebração do
aniversário do beato Pedro Batista. O cântico obedece ao texto utilizado na
tradução para o português, entretanto, em vez das palmas comumente usadas para
conferir um caráter festivo à melodia, o que se ouve é uma sonoridade plangente
que lembra os benditos piedosos cantados nos exercícios devocionais. O canto é
entoado apenas por mulheres, cujas expressões fisionômicas corroboram a feição
penitencial da melodia. A montagem cinematográfica constrói uma associação
entre o aniversário do Beato e uma procissão em honra de São Pedro, cujas
imagens sucedem às da comemoração, contudo mantendo-se o mesmo cântico.
Inspirador para a nossa pesquisa, este registro
audiovisual suscita a necessidade de contemplarmos em nossa investigação a
existência de uma forma penitencial de cantar. Existe um “jeito” de cantar que
entristece qualquer música; é essa a impressão que nos dá quando, raríssimas
vezes, surpreendemos um rezador cantando uma “música do mundo”. Quando
convidados a cantarem uma música que não seja bendito, é comum retrucarem com
negativas sumárias, semelhantes a que ouvimos de alguns moradores da Ladeira do
Horto: “como não andamos no mundo, não devemos cantar”. Neste sentido, o canto
do Parabéns Pra Você constitui um documento raro sobre essa
“estética penitencial”, cujas propriedades acústicas servem de prelúdio para
nosso estudo sobre os benditos fortes, escopo de nossa etnografia musical.
Apresentamos inicialmente um sonograma referente a um trecho da melodia,
gráfico que ajuda a visualizar e comparar o canto comum do Parabéns Pra
Você com a versão que foi executada no documentário, e por
conseguinte, justificar a nossa proposta de privilegiar em nossa análise a forma de
cantar esse repertório musical.

Pelo exame do gráfico é possível comparar alguns
atributos da forma comum de se cantar o Parabéns Pra Você com
aqueles presentes na forma penitencial cantada no filme. Abaixo do texto, vê-se
a transcrição rítmica de um trecho da melodia convencional em notação musical
e, acima, uma plotagem referente à onda sonora correspondente ao que foi
entoado no filme. Os eixos horizontal e vertical correspondem, respectivamente,
ao tempo de duração das sílabas e à intensidade sonora (amplitude da onda).
Observe-se, em comparação com a notação musical, como algumas sílabas são
“esticadas” (ri, li, des) e outras “comprimidas”
(da, ci). Como mostra a amplitude da onda, as esticadas têm
intensidade sonora reduzida, chegando quase ao silêncio, fato que somado ao
timbre nasalado, e a uma abundância de portamentos, inflige à sonoridade um
caráter lamentoso, qualidade que, na cena, alcança as sensibilidades do corpo
dos participantes da “festa” e produz uma performance compatível
com uma cerimônia religiosa.
Os ensaios realizam uma discussão a partir de seus
filmes Batteries Dogon (1965) e Danses des Reines à
Porto Novo (1971).
Sobre a cinematografia relativa à religiosidade
popular brasileira, cumpre mencionar o projeto que Patrícia Monte-Mór, em
parceria com a ONG ISER – Instituto de Estudos da Religião, desenvolveu em
1984, reunindo 62 produções cinematográficas sobre esse tema. Por intermédio
desse inventário, nota-se a preferência dos cineastas por temas relacionados a
crenças consideradas exóticas e a eventos extraordinários, tendência que se
efetiva inicialmente nos filmes A Santa de Coqueiros,
de Ramon Garcia (1930) e As Curas do Prof. Mozar (1930), dirigido
por Alberto Botelho, ambos motivados por fatos excepcionais ocorridos nas
locações, preferência temática que posteriormente atrairia atenção para o
sertão nordestino, e, particularmente, para as peregrinações a Juazeiro Norte,
motivadas pela crença popular no “milagre” e na santidade do Padre Cícero. Esse
estudo resultou na amostra Religiões Populares no Brasil, realizada
em várias universidades brasileiras durante o ano de 1984.
A expressão alude à categoria “modelo
sociológico” segundo a perspectiva utilizada por Jean-Claude Bernardet na
análise dos curtas-metragens Viramundo (Geraldo Sarno, 1965) e Subterrâneos
do Futebol (Maurice Capovilla, 1965), a qual toma como foco
analítico a forma como se apresenta ou se constrói a autoridade sobre a
enunciação dos temas retratados pelo filme.