quinta-feira, 24 de julho de 2014

Terceiro inventário: nossas gravações antigas

Favorecidos pela nossa experiência prévia com a religiosidade popular do Cariri, sabíamos, desde o início dessa pesquisa, que seria contraproducente implementar propostas de trabalho que dependessem da documentação massiva do repertório musical, ou que condicionassem a realização da pesquisa à produção recente de uma amostra etnográfica expressiva, seja em relação a informantes capazes de nos relatar sobre o uso e o sentido dos benditos antigos, seja em relação a registros sonoros ou audiovisuais desses cânticos. Assim, dentro de nossa realidade etnográfica, em que o nosso objeto de pesquisa aparece como um vestígio de um modo antigo de conceber uma experiência religiosa, e portanto raro de se documentar, cumpriu-nos assumir uma postura etnográfica compatível com este cenário.
Graças a pesquisas que havíamos realizado anteriormente, no início de nossa pesquisa de doutorado já contávamos com um considerável acervo de gravações de entrevistas e de benditos, de alguns dos quais estávamos completamente esquecidos e que foram redescobertos durante a audição de fitas antigas que havíamos acumulado desde a nossa primeira passagem pelo sertão do Cariri, no ano de 2000. Como ponto de partida, dedicamo-nos a realizar um exame minucioso dessas gravações e entrevistas, na intenção de localizar, dentro desse repertório, indícios sobre juízos de valor referentes a determinadas músicas, bem como justificativas que explicassem o seu mérito especial. Além da contribuição material fornecida por esse repertório de gravações antigas, o ato de reouvi-las revelou-se parte de um processo de conhecimento que não se esgotava na compreensão do dado sonoro, uma vez que incitava a experiência inevitável de relembrar as circunstâncias do registro, para muito além do fenômeno acústico. Esse exercício excitava a memória e lhe investia de maior argúcia em lembrar detalhes visuais do encontro; não raro, irrompiam faces, gestos e olhares que atualizavam a performance musical e emprestavam às gravações maior relevância etnográfica[1].
No conjunto de mensagens e narrativas de seus textos, os benditos antigos apresentam talvez a compilação mais próxima do que seria a expressão verbal daquilo que estamos chamando de religiosidade penitente. São “catecismos” orais que resumem ensinamentos doutrinários, dão exemplos de resignação rememorados na história de vida de algum santo, ministram profissões de fé e prédicas de ação de graças. Alguns desses textos apresentam, versificadas, longas narrativas baseadas em passagens do evangelho, sobretudo remissões aos sofrimentos de Jesus Cristo. Há ainda os benditos que apresentam versões musicadas de algumas das principais orações do léxico católico, como a Salve Rainha, a Ladainha de Nossa Senhora e o Confiteor.
Por intermédio desse inventário e da produção etnográfica recente, anotamos algumas recorrências que suscitaram uma ordenação do repertório, levando em conta o assunto mobilizado pelo texto e o uso a que se presta(va) o canto dos benditos. São muito comuns benditos destinados a homenagear um determinado santo, predominando em Juazeiro do Norte aqueles direcionados ao Padre Cícero, ao Frei Damião e a Nossa Senhora das Dores; entretanto, recolhemos outros destinados à veneração de São Miguel, de São Francisco, de Sant’Ana e de São Sebastião, santos muito cultuados na cidade. Verificamos também o uso da designação “benditos para o caminho”, para aludir a um tipo de música de uso comum nas romarias, cantada em cima dos “paus-de-arara”, caminhões improvisados para o transporte de romeiros, ou dentro de ônibus fretados para conduzir os devotos até Juazeiro do Norte. Há também benditos destinados a datas especiais: benditos de Nossa Senhora das Candeias; benditos para Semana Santa; benditos para o Natal; benditos para os Santos Reis, dentre outros. As estrofes abaixo ilustram o texto inicial de algumas dessas músicas[2]:

·      Bendito da estrada:

Tirei a chave da porta
Botei os pés no caminho
No rumo de Juazeiro:
Pedir “bença” a meu Padrinho.

·      Bendito de São Miguel:

Deu uma hora o sino tocou
São Miguel no céu as almas pesou
Valei-me Senhora venha me ensinar
Os caminhos do céu pra eu não errar.

·      Bendito de Sant’Ana:

Senhora Sant’Ana cheia de alegria
Nós somos devotos da Virgem Maria
Senhora Sant’Ana já subiu nos montes
Há! Onde ela andou deixou uma fonte
Que fonte tão doce senhora tão bela
Desceu dois anjos e bebeu água nela.

·      Bendito dos Três Cravos:

Três cravos os pés e as mãos pregou Jesus no madeiro
A lança aguda traspassou seu coração
A José e Maria foi uma augusta aflição
Chora José e Maria em um pranto amargurado
Vendo o seu filho inocente neste mundo abandonado,
Preso entre dois ladrões em um madeiro cravado.
Prenderam-no em um madeiro foi quando o galo cantou.
Chegou José e João e o corpo de Jesus tirou.
Envolveram-no em um lençol e para o sepulcro o levou.
Era uma pedra rocha que José tinha guardado
Para sepultar seu corpo ele tinha preparado.
O corpo de Jesus Cristo foi onde foi sepultado
Ofereço esse bendito a Jesus Sacramentado,
Que nos livre dos castigos e perdoe nossos pecados.
Com incenso e mirra foi o sepulcro incensado[3].

Na religiosidade penitente de Juazeiro do Norte o significado e os efeitos do canto dos benditos fortes advêm, sobretudo, de um entendimento religioso para o qual a experiência penitencial é prerrogativa para a salvação da alma. Se a forma dos altares domésticos propicia uma experiência de contemplação do sofrimento do Coração de Jesus e da corte celeste que o rodeia, o que predomina no canto dos benditos fortes é uma experiência de participação “real” no sofrimento engendrado pela narrativa, cuja eficácia, como mostraremos posteriormente, é garantida pelo exercício de uma performance que visa consignar no corpo uma forma particular, cuja compleição pretendida parece tomar como referência visual a efígie de algum santo do altar doméstico, num exercício de mimese que mais do que elaborar semelhanças visuais logra compartilhar com ele o seu martírio.


[1] A contribuição dessa experiência de memória musical não se restringiu ao desenvolvimento da reflexão sobre o repertório das músicas religiosas, mas ajudou relembrarmos as salas de santos das casas da Ladeira do Horto que visitamos e as beatas com quem conversamos na ocasião de nossas primeiras visitas a Juazeiro do Norte – suas fisionomias, silêncios e indumentárias, época em que sequer supúnhamos a idealização desta pesquisa.
[2] Em função da extensão da maioria dos benditos, os exemplos que incluiremos no corpo do texto correspondem à seleção de trechos mais significativos.
[3] A gravação a partir da qual transcrevemos esse texto foi restaurada a partir de uma registro realizado pela professora Isaíra Silvino na década de 1970, junto à Ordem de Penitentes do Sítio Cabeceiras, Barbalha-CE, município que faz fronteira com Juazeiro do Norte. Note-se no texto, como é comum suceder aos benditos que narram a crucifixão e o martírio de Jesus, o destaque fornecido a dor de Nossa Senhora pela morte do filho inocente.