sexta-feira, 21 de março de 2014

Uma cidade santa no sertão nordestino

O caráter da religiosidade que se estabeleceu na maioria dos estados do nordeste brasileiro foi sobremaneira marcado pelo projeto catequético implantado pelos frades capuchinhos italianos, por ocasião das missões itinerantes realizadas na primeira metade do século XVIII. A despeito da crença no paraíso e na glória de Deus, predominava uma orientação religiosa que estimulava a autopunição com o fim de aplacar os “rigores da justiça divina” (Silva 1982), modelo responsável por disseminar uma iconografia e um repertório musical que testemunham e configuram esse caráter devocional. Além desse discurso teológico, para o qual a reconciliação com Deus era consequência de uma vida voltada para penitência, as condições sociais fortemente marcadas pela seca e pela fome fizeram do sofrimento e da morte uma das principais insígnias do tipo de catolicismo que se estabeleceu no sertão nordestino.

Essa marca devocional, da qual seria principal representante a cidade cearense de Juazeiro do Norte, afastava-se dos cânones oficiais, os quais as consideravam como expressão de fanatismo e caráter supersticioso. A posição adversa da Igreja Católica em relação aos cultos populares foi intensificada pelo espírito renovador implementado pelo Concílio Vaticano I[1], o qual, dentre outras orientações, foi fortemente marcado pelo propósito de reforçar o controle clerical, nos moldes do ultramontanismo europeu e pela determinação de coibir as manifestações em que predominava a liderança leiga. Essa política de renovar o catolicismo tomando por modelo a ortodoxia romana ficou conhecida no Brasil por “romanização”, e como aponta Pinheiro (1989:195), o Estado do Ceará constituiu-se uma “área de romanização por excelência”, a qual teve como primeiro Bispo D. Luiz Antônio dos Santos, autêntico propagador do modelo reformador emergente. A aplicação da política de renovação no interior do nordeste brasileiro encontrou algumas dificuldades, pois além do combate eclesial imposto às manifestações do laicato, houve também, e principalmente, tensões internas envolvendo a própria hierarquia clerical. Essa postura da Igreja não recebia o apoio do povo, criando certas reservas em relação a sua autoridade, ponderações que no nosso entender ainda resistem silenciosamente na memória e perpassam a compreensão romeira em relação ao poder sagrado da Igreja.

Beata Maria de Araújo
Além do formato penitencial da catequese missionária e das prédicas dos sacerdotes simpáticos a este modelo pastoral, um acontecimento em especial protagonizado pelo Padre Cícero, então capelão de Juazeiro do Norte, conferiu a este município a chancela de cidade escolhida pela Providência, contudo deflagrou uma crise religiosa que marcaria profundamente a cultura, a política e a religiosidade nordestina. Numa missa em honra ao Sagrado Coração de Jesus celebrada no dia 1o de março da Quaresma de 1889, a hóstia distribuída à paroquiana Maria de Araújo verteu-se em sangue, acontecimento que se repetiria durante dois meses todas as quartas e sextas-feiras da Quaresma e que levou o Monsenhor Monteiro, então reitor do Seminário do Crato, município vizinho, a organizar uma romaria em direção ao povoado de Juazeiro do Norte, em cuja oportunidade, durante o sermão apresentou como sinônimo da manifestação prodigiosa da Providência os panos manchados pelo sangue que brotara da hóstia recebida por Maria de Araújo, e que segundo o clérigo tratavam-se do sangue de Jesus Cristo. Apesar dessa primeira manifestação pública, apenas em 1891, quando da repetição do prodígio, a imprensa cearense deu notoriedade ao fato, o que na óptica de Della Cava (1976) provocou um conflito eclesiástico na hierarquia católica brasileira e promoveu “um cisma em potencial dentro das fileiras do catolicismo do Nordeste”.

O “milagre” que dentre outras consequências referendara junto aos romeiros a santidade do Padre Cícero e da cidade de Juazeiro do Norte, não recebeu acolhida pela Igreja Católica, a qual considerou o acontecido um embuste (Della Cava, 1985) responsável por fomentar o fanatismo religioso em todo Nordeste, posicionamento que rendeu ao Padre Cícero sérias sanções eclesiásticas chegando o sacerdote a receber como punição a suspensão das ordens. O brado vigoroso que se levantou em todo Nordeste permanece ainda hoje no discurso do povo: “a Igreja diz que ele não é santo, mas a gente sabe que é”. Frases como esta, ditas em tom de acanhamento, são precipitadas frequentemente, não apenas entre os devotos de Juazeiro, mas da boca daqueles que para ali acorrem na esperança de alcançar graças, para render tributos de gratidão ou apenas para participar de romarias. Entre os romeiros, não há dúvidas sobre o milagre, tampouco sobre a santidade do Padre Cícero, sendo impensáveis quaisquer declarações que interpele o mérito da questão.

Representação iconográfica de Padre Cícero. À esquerda, sua representação mais comum, quando aparece vestido com uma batina preta de uso diário. A imagem à direita, representa-o trajando batina preta, uma sobrepeliz e uma estola escura, paramentos usados para celebrações litúrgicas, geralmente dentro das igrejas. Esta é a imagem que consta no interior dos oratórios de altares domésticos, sugerindo uma espécie de licença popular em relação à sanção que afastou o patriarca da administração de sacramentos.

O afluir de miríades de romeiros, seja para estabelecer residência ou para participar de romarias, propalou um tipo muito especial de epifania, que materializada nos objetos, na iconografia e, sobretudo, na música revela aspectos importantes desse credo religioso. Nesse contexto, o canto de benditos está intimamente integrado às práticas religiosas, tanto nas grandes romarias como nos pequenos ofícios do cotidiano. Seja encomendando a alma do defunto, embalando coreografias de danças religiosas, bendizendo o Menino Jesus em celebrações natalinas ou marcando o ritmo dos golpes de cilício nas cerimônias de autoflagelação, a música assume sempre um lugar de destaque, sendo impossível conceber uma procissão, uma novena, uma quermesse ou um funeral sem a "animação dos benditos”. 


[1] Concílio ecumênico realizado entre os anos de 1869 e 1870 que teve dentre as suas determinações o propósito de restaurar o prestígio da ortodoxia romana.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Primeiros silêncios