O
caráter da religiosidade que se estabeleceu na maioria dos estados do nordeste
brasileiro foi sobremaneira marcado pelo projeto catequético implantado pelos
frades capuchinhos italianos, por ocasião das missões itinerantes realizadas na
primeira metade do século XVIII. A despeito da crença no paraíso e na glória de
Deus, predominava uma orientação religiosa
que estimulava a autopunição com o fim de aplacar os “rigores da justiça
divina” (Silva 1982), modelo responsável por disseminar uma iconografia e um
repertório musical que testemunham e configuram esse caráter devocional. Além
desse discurso teológico, para o qual a reconciliação com Deus era consequência
de uma vida voltada para penitência, as condições sociais fortemente marcadas
pela seca e pela fome fizeram do sofrimento e da morte uma das principais
insígnias do tipo de catolicismo que se estabeleceu no sertão nordestino.
Essa
marca devocional, da qual seria principal representante a cidade cearense de
Juazeiro do Norte, afastava-se dos cânones oficiais, os quais as consideravam
como expressão de fanatismo e caráter supersticioso. A posição adversa da
Igreja Católica em relação aos cultos populares foi intensificada pelo espírito
renovador implementado pelo Concílio Vaticano I[1],
o qual, dentre outras orientações, foi fortemente marcado pelo propósito de
reforçar o controle clerical, nos moldes do ultramontanismo europeu e pela
determinação de coibir as manifestações em que predominava a liderança leiga.
Essa política de renovar o catolicismo tomando por modelo a ortodoxia romana
ficou conhecida no Brasil por “romanização”, e como aponta Pinheiro (1989:195),
o Estado do Ceará constituiu-se uma “área de romanização por excelência”, a
qual teve como primeiro Bispo D. Luiz Antônio dos Santos, autêntico propagador
do modelo reformador emergente. A aplicação da política de renovação no
interior do nordeste brasileiro encontrou algumas dificuldades, pois além do
combate eclesial imposto às manifestações do laicato, houve também, e
principalmente, tensões internas envolvendo a própria hierarquia clerical. Essa
postura da Igreja não recebia o apoio do povo, criando certas reservas em
relação a sua autoridade, ponderações que no nosso entender ainda resistem
silenciosamente na memória e perpassam a compreensão romeira em relação ao
poder sagrado da Igreja.
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Beata Maria de Araújo |
Além do formato penitencial da
catequese missionária e das prédicas dos sacerdotes simpáticos a este modelo
pastoral, um acontecimento em especial protagonizado pelo Padre Cícero, então
capelão de Juazeiro do Norte, conferiu a este município a chancela de cidade
escolhida pela Providência, contudo deflagrou uma crise religiosa que marcaria
profundamente a cultura, a política e a religiosidade nordestina. Numa missa em
honra ao Sagrado Coração de Jesus celebrada no dia 1o de março da Quaresma de
1889, a hóstia distribuída à paroquiana Maria de Araújo verteu-se em sangue,
acontecimento que se repetiria durante dois meses todas as quartas e
sextas-feiras da Quaresma e que levou o Monsenhor Monteiro, então reitor do
Seminário do Crato, município vizinho, a organizar uma romaria em direção ao
povoado de Juazeiro do Norte, em cuja oportunidade, durante o sermão apresentou
como sinônimo da manifestação prodigiosa da Providência os panos manchados pelo
sangue que brotara da hóstia recebida por Maria de Araújo, e que segundo o
clérigo tratavam-se do sangue de Jesus Cristo. Apesar dessa primeira
manifestação pública, apenas em 1891, quando da repetição do prodígio, a
imprensa cearense deu notoriedade ao fato, o que na óptica de Della Cava (1976)
provocou um conflito eclesiástico na hierarquia católica brasileira e promoveu
“um cisma em potencial dentro das fileiras do catolicismo do Nordeste”.
O “milagre” que dentre outras
consequências referendara junto aos romeiros a santidade do Padre Cícero e da
cidade de Juazeiro do Norte, não recebeu acolhida pela Igreja Católica, a qual
considerou o acontecido um embuste (Della Cava, 1985) responsável por
fomentar o fanatismo religioso em todo Nordeste, posicionamento que rendeu ao
Padre Cícero sérias sanções eclesiásticas chegando o sacerdote a receber como
punição a suspensão das ordens. O brado vigoroso que se levantou em todo
Nordeste permanece ainda hoje no discurso do povo: “a Igreja diz que ele não é
santo, mas a gente sabe que é”. Frases como esta, ditas em tom de acanhamento,
são precipitadas frequentemente, não apenas entre os devotos de Juazeiro, mas
da boca daqueles que para ali acorrem na esperança de alcançar graças, para
render tributos de gratidão ou apenas para participar de romarias. Entre os
romeiros, não há dúvidas sobre o milagre, tampouco sobre a santidade do Padre
Cícero, sendo impensáveis quaisquer declarações que interpele o mérito da
questão.
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Representação
iconográfica de Padre Cícero. À esquerda, sua representação mais comum, quando
aparece vestido com uma batina preta de uso diário. A imagem à direita,
representa-o trajando batina preta, uma sobrepeliz e uma estola escura,
paramentos usados para celebrações litúrgicas, geralmente dentro das igrejas.
Esta é a imagem que consta no interior dos oratórios de altares domésticos,
sugerindo uma espécie de licença popular em relação à sanção que afastou o
patriarca da administração de sacramentos.
O afluir de miríades de
romeiros, seja para estabelecer residência ou para participar de romarias,
propalou um tipo muito especial de epifania, que materializada nos objetos,
na iconografia e, sobretudo, na música revela aspectos importantes desse
credo religioso. Nesse contexto, o canto de benditos está intimamente
integrado às práticas religiosas, tanto nas grandes romarias como nos
pequenos ofícios do cotidiano. Seja encomendando a alma do defunto, embalando
coreografias de danças religiosas, bendizendo o Menino Jesus em celebrações
natalinas ou marcando o ritmo dos golpes de cilício nas cerimônias de
autoflagelação, a música assume sempre um lugar de destaque, sendo impossível
conceber uma procissão, uma novena, uma quermesse ou um funeral sem a "animação
dos benditos”.
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[1] Concílio
ecumênico realizado entre os anos de 1869 e 1870 que teve dentre as suas
determinações o propósito de restaurar o prestígio da ortodoxia romana.